História da Sexualidade: A vontade de saber (Vol. 1) – Michel Foucault

“Nossa época foi iniciadora de heterogeneidades sexuais”Michel Foucault

Após escolher um caminho curioso, e não muito indicado para ler e escrever sobre os volumes 2, 3 e 4, finalizo essa jornada complexa e tortuosa pela sexualidade através dos olhos do autor Michel Foucault, que em quatro volumes, sendo o último, As confissões da carne, publicado postumamente e explicitamente contra a vontade do autor, se propôs a estudar a sexualidade no Ocidente. Se no volume 2, O uso dos prazeres, ele havia voltado sua atenção ao sexo na antiguidade grega, no volume 3, intitulado O cuidado de si, o autor passa a decifrar o conceito da vigilância consigo mesmo e de como ocupar-se com a própria alma.

Com nova edição publicada pela Record em 2020, e com tradução de Maria Thereza da Costa e J.A. Guilhon, História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber, publicada pela primeira vez na França em 1976 como Histoire de la sexualite: La volonté de savoir é um livro curiosamente curto considerando as 320 páginas dos volumes 2 e 3, e as 528 do volume 4: com pouco mais de 170 páginas, Foucault deu início à uma minuciosa dissecação da sexualidade, ou melhor, usando as palavras do próprio autor: “uma série de estudos a respeito das relações históricas entre o poder e o discurso sobre o sexo” (p. 99).

A posteriori, o livro é uma contundente crítica — as vezes escrita de forma não totalmente clara, é verdade, e talvez, de forma ainda mais rebuscada e fragmentada do que nos 3 volumes ulteriores — à ideia equivocada de que a sexualidade no Ocidente, mais precisamente entre o século 18 e 20 sofreu tragicamente com a repressão devido à ascensão do capitalismo e da burguesia. De acordo com o autor, a sexualidade nunca foi de fato reprimida, mas na verdade, submetida a um mecanismo de crescente incitação findado o século 16. 

Capa original de A vontade do saber, 1976

O sucinto primeiro capítulo, intitulado “Nós, vitorianos” aborda a cisheteronormatividade da sexualidade na família — em seu sentido canônico — na era vitoriana, bem como a hipocrisia e o falso puritanismo daquela sociedade, que cerca de um século antes, era conhecida pela franqueza sexual, pela ausência de barreiras relacionadas ao que pouco depois viria a ser considerado obsceno e sujo. Em suma: calando o sexo ao sequestrá-lo e mantê-lo enclausurado no quarto de casal da família conjugal, sendo considerado aceitável apenas quando a reprodução era a finalidade, fazendo o sexo tornar-se estéril. Melhor dizendo: o coito interrompido, o sexo homossexual, a masturbação e o sexo anal passam a ser considerados anormais, sendo relegados a becos sujos. Esse sexo agora reprovável “é ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio. Não somente não existe, como não deve existir, e à menor manifestação fá-lo-ão desaparecer” (p. 8).

Foucault em jardins du musée, fotografado por Michèle Bancilhon

Adiante, e no livro como um todo, Foucault começa um estudo sobre as técnicas do poder no século 18, o surgimento da população como problema econômico-político, o aspecto discursivo da sexualidade como poder, a masturbação das crianças, a problematização da sexualidade com a descoberta da psicanálise, assim como o incesto e criação do termo “a mulher histérica”.

Dialogando, ainda que de forma oposta com o atual cenário da política brasileira, que é assumidamente reacionário, anti-educação, anti-ciência e que insiste em esconder — de forma risívelmente ineficaz — de crianças e adolescentes que o sexo existe, criando uma geração de adultos que não conhecerão o próprio corpo, bem como as doenças que poderão ser contraídas durante o ato sexual, Foucault, ao falar sobre a sexualidade das crianças (de forma incrivelmente clara e sucinta para seus padrões) descreve o que talvez pode ser considerado como a primeira aula de educação sexual já ministrada. A saber: em 1776, o escritor progressista alemão Johann Bernhard Basedow organizou um encontro com o propósito de racionalizar a educação sexual entre crianças, e para isso convidou nomes consagrados da época para assistirem ao sucesso do experimento, sendo Goethe um dos poucos a dizer não ao convite.

“No que diz respeito ao sexo, a mais inexaurível e impaciente das sociedades seja a nossa.” (p. 37)

O que fica evidente neste livro, e que viria a dar o tom dos livros posteriores sobre a sexualidade, é a predileção do autor para nos indagar constantemente sobre os assuntos recém-abordados e não simplesmente nos dar as respostas mastigadas do que seria considerado certo ou errado (prática também utilizada por Judith Butler, solidamente influenciada pelo autor).

Ao ler Foucault — ao menos seus estudos acerca da sexualidade — somos forçados a pensar por nós mesmos, mas primeiro precisamos ultrapassar seu estilo de escrita idiossincrático, que é repleto de uma complexidade de elipses e sintaxes; o que pode afastar o leitor médio. Todavia, e em última análise, a vontade de saber precisa estar no topo das prioridades de quem se dispõe a ler esse, os demais volumes da série, ou a obra completa do autor, pois Foucault está longe de ser considerado um simples passatempo.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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