Após os estudos da hipocrisia, da burguesia e do capitalismo como causadores da repressão sexual na era vitoriana em A Vontade do Saber, publicado pela primeira vez em 1976; a conduta sexual e o início da homossexualidade na Grécia clássica em O Uso dos Prazeres, e O Cuidado de Si, que a partir de textos gregos e latinos problematizavam o cuidado do homem consigo mesmo em relação às várias formas de desejo sexual, ambos publicados em 1984; a editora Paz e Terra publica em 2020 a edição póstuma de As Confissões da Carne (com tradução de Vera Portocarrero e Heliana de Barros Conde Rodrigues) que tenta, a partir de milhares de manuscritos deixados por Foucault, tratar em três longos capítulos a culpa causada pelas necessidades da carne, do sexo, e do pecado nos cinco primeiros séculos da Era Moderna.
No primeiro capítulo, “A formação de uma experiência nova”, de modo acertado o autor escolhe dar início a sua longa jornada tratando da criação e da procriação, de como o prazer sexual precisou se remodelar para ser visto como uma conduta respeitosa entre todos (mas que nem de longe – e o autor é enfático nesse ponto – foi seguida por todos). Ele utiliza textos de Clemente de Alexandria, em especial “O Pedagogo” e “Estromata”, e Santo Agostinho como bases para uma profunda pesquisa sobre castidade, casamento, pecado e salvação: o reencontro com Deus na eternidade. Como sabemos, de acordo com os ensinamentos cristãos essa salvação não só não era garantida como também era praticamente impossível de ser entendida e obtida.
Ao escolher abordar os escritos de Clemente e Agostinho, Foucault precisa, inevitavelmente, analisar as ideias e observações obtidas destes dois autores, como também novos conceitos a partir de textos dos autores estudados por estes dois. Desse modo, precisamos, por mais de 200 páginas, ler sobre medicina, sobre agricultura (já que seria impossível não deparar com os clichês das várias analogias sexuais sobre como “semear a terra” e “obter boas colheitas”). Mas não é suficiente. Também somos apresentados a crenças curiosas sobre alguns animais que têm o propósito de demonstrar como o sexo sem a finalidade de procriação era condenável. É curioso, porém, ler com nossas mentes modernas e desconstruídas de 2020 (um ano em que mais do que nunca buscamos e precisamos da validação e da representação de todos os tipos de identidade de gênero) o questionamento de Foucault: “Ora, e quanto ao sexo? Um indivíduo não pode mudar de sexo, nem ter dois, tampouco ser de um terceiro que seja intermediário entre o masculino e o feminino: essas são quimeras que os homens imaginam, mas às quais a natureza se recusa.” (p. 48).
Adiante, o autor aborda as diferenças entre penitência, celibato e virgindade, mas sob um olhar direcionado a Adão e Eva e se houve, de fato, ato sexual entre os dois no paraíso. Essa sessão, a meu ver, juntamente com as discussões acerca do batismo e da morte (como salvação) constitui-se dos momentos mais interessantes dessa edição; isto, é claro, se levarmos em consideração os pensamentos do próprio autor sobre a morte e o suicídio como algo positivo. Ora, sendo a morte aqui interpretada como salvação (ao morrer o homem deixa de pecar, e ao fazê-lo, encontra-se com seu Criador), e a sua então (possível) constante culpa por causa de sua homossexualidade (pecado), fica impossível não entender sua obsessão com o tema quando ele escreve “O batismo constitui, pois uma inversão do sentido da morte: uma morte que faz morrer para o pecado e para a morte, e que, portanto, a este título, deve ser ardorosamente desejada.” (p. 103).
Existe um anacronismo em forma de uma estranha calmaria dentro de cada capítulo que contrasta duplamente com o caos do estilo de escrita do autor e com o caos do tema sexualidade em si, visto que não percebemos uma mudança brusca de temas, como, a meu ver, acontecia em certos momentos nos volumes dois e três, uma vez que de modo fluído, Foucault caminha por pastores de ovelhas e suas funções filosóficas, penitência, virgindade, morte, casamento, fidelidade e assassinatos bíblicos sem que percebamos que o tema que estávamos até então estudando, já encontra-se estranhamente no passado, e que na verdade, já nos encontramos inseridos em outro assunto, novo e completamente diferente.
“Do mesmo modo como algumas artes, entre as outras profissões, foram inventadas para bem conduzir cada uma das tarefas visadas, do mesmo modo, parece-me que a profissão de virgindade é uma arte e uma ciência de vida divina.” (p. 225) – Gregório de Nissa.
Já no segundo capítulo, “Ser Virgem”, Foucault usa textos de uma variedade de autores para demonstrar a importância que era dada a virgindade já no século IV. Seguimos, pois, nosso estudo entre nomes como Basílio de Ancira, Gregório de Nissa, João Crisóstomo (este um dos mais recorrentes) e Evágrio Pôntico ao longo de um capítulo mais curto, mas que por algum motivo nos passa a sensação de ser interminável. Aprendemos, contudo, que pelo menos durante o seu primeiro século, o cristianismo parecia empregar o mesmo sistema de moral sexual usado pela cultura antiga, e eventualmente chegaremos ao conceito dos três graus de virgindade: o que recebemos ao nascer, e que se assim nos conservamos até o fim da vida, e que de acordo com os cristãos, é a entrada para a vida eterna no céu; o que recebemos no batismo (segundo nascimento), e o que Tertuliano chama de monogamia, que consiste em abdicar do sexo em caso de separação ou morte do marido.
Não que o capítulo seja de todo maçante. Longe disso. Uma das sessões intitulada “Artes da Virgindade” é particularmente interessantíssima, pois aborda, a partir de De Nissa e Agostinho, o modo como o tema virgindade atinge um estágio da mais alta respeitabilidade, sendo criado a sua volta um conjunto de procedimentos relacionados aos cuidados da alma, que através de uma lista enredada com dietas sobre a autorregulação dos desejos carnais começa a ser entendido não apenas como a já conhecida estrada tortuosa que conduz ao encontro com o Pai eterno, mas, de fato, como uma arte de permanecer seguro de si.
O último capítulo é destinado ao casamento. Foucault aborda temas como “O dever dos esposos”, “O bem e os bens do casamento”, e “A Libidinização do sexo”, tendo como base a concepção inflexível de Santo Agostinho acerca da ética sexual no cristianismo ocidental. Precisamos ler, estudar, decifrar e finalmente entender dezenas de desvios e analogias para saber o que é realmente importante: o casamento, a virgindade ou a progenitura. Para alguns, o casamento não apenas se trata de uma saída fácil para os fracos e covardes, como ainda pode ser entendido como uma relação dispensável, isso pensando-se apenas no quesito “continuar a vida na terra”, uma vez que o casamento não é fundamental para gerar vida, e sim o sexo. O casamento é apenas um “comércio carnal” (p. 397).
A virgindade, por outro lado, significava uma vida de calmaria sem as preocupações diárias causadas pelo ato de criar e educar os filhos. Não devemos, todavia, encarar o casamento unicamente como uma inépcia, como um prêmio de consolação a quem não consegue ser plenamente incorrupto em relação ao desejos da carne. O conceito de permanecer virgem não é simplesmente um estado completamente livre de interpretações, ao modo que existem casos reprováveis de o ser. Se a mulher, por exemplo, propositalmente escolher se manter virgem por muito tempo, tornando-se velha, porque visa somente as diversas recompensas, ela logo não está verdadeiramente oferecendo sua virgindade, mas, sim, a vendendo; sendo então, uma prostituta, voltando assim, à estaca zero. Crisóstomo, em seu documento “De Virginitate” vai ainda mais longe ao depositar a culpa na mulher que, disposta a manter-se na Santa Virgindade é traída pelo marido visto que “foi ela que o empurrou ao abismo da libertinagem, privando-o da união legítima” (p. 349).
Me parece, sem nenhuma surpresa, que esta arte foi criada com o puro e direto intuito de punir a mulher através dos séculos.
(Exemplar recebido em parceria com a editora).