Uma das coisas mais interessantes das experiências vividas por negros estadunidenses é a passabilidade. Não que essa seja uma coisa exclusiva deles, mas a maneira como ela se deu pelas bandas de lá é no mínimo curiosa. Aos que não conhecem esse fenômeno pelo seu nome, a passabilidade é, grosso modo, a capacidade que uma pessoa tem de ser lida socialmente como alguém que não faz parte do seu grupo identitário de origem. Já vimos isso ser tema nas artes algumas vezes, mas talvez o caso mais emblemático seja o de Passing, da Nella Larsen, que no Brasil ganhou três traduções – Identidade (Autêntica), traduzido por Rogério W. Galindo; Passando-se (Imã Editorial), traduzido por Julio Silveira; e De passagem (Penguin-Companhia), traduzido por Floresta – e também fora adaptado para o cinema pela diretora Rebecca Hall e estrelado por Tessa Thompson e Ruth Negga. Isso posto, também temos Incognegro (Veneta), que com roteiros de Mat Johnson, ilustrações de Warren Pleece e tradução de Gabriela Franco, entrega uma narrativa bem interessante em torno dessa questão, proporcionando mais uma possibilidade para o imaginário acerca de tal situação.
Em Incognegro acompanhamos Zane Pinchback, um repórter negro de pele clara que no início do século XX passa-se por branco para registrar e denunciar os linchamentos organizados por supremacistas brancos, vitimando muitas pessoas pelo território norte-americano. Contudo, e como seria de se esperar, essa não é uma atividade fácil de se exercer – tanto que sempre assina tais matérias com seu pseudônimo, o Incognegro. Logo, já no início da novela gráfica, após testemunhar mais uma dessas atrocidades, Pinchback está decidido a desistir de seu ofício. Ele só não contava que uma última incursão nesse universo tenebroso se faria impossível de negar.
O que mantém Pinchback amarrado a essa teia racista e – nos permitam a redundância – violenta é o conhecimento de que uma pessoa querida pode vir a ser a próxima vítima de tal movimentação odiosa. Isso faz com que ele não só aceite essa última matéria a ser escrita, como não perca tempo em ir de Nova York para a cidade de Yazoo, Mississipi, sendo seguido por um amigo próximo, também negro de pele clara, o Carl, fato que tornará essa viagem muito mais complicada. Tudo o que ele quer é evitar uma tragédia. Porém, não faz a mínima ideia do que está por vir.
Por meio de ilustrações sóbrias em preto e branco, vemos o desenrolar da história sem que sejamos poupados de momentos pesados. Já nas primeiras páginas do quadrinho, somos confrontados com a execução de um homem negro. Difícil não se horrorizar. E esse não será o único momento que seremos postos diante de tal situação. Johnson e Pleece vão fundo nesta narrativa. E a dupla é excelente em manter a tensão ao longo de toda a história. Há sempre um suspense, há sempre uma urgência.
Esta edição brasileira de Incognegro ainda conta com dois textos do autor, Mat Johnson. O primeiro deles, uma nota de quatro parágrafos, já se inicia dizendo: “eu cresci sendo um menino negro que parecia branco”. Nele, Johnson, de forma intimista, nos conta como chegou a ideia desta história, que remonta à sua infância e veio se consolidando ao longo de sua vida – tendo especial inspiração numa história real, a de Walter White, um afro-americano de pele clara que como seu Pinchback, se infiltra em comunidades do extremo-sul estadunidense se passando por um homem branco a fim de investigar os linchamentos de negros que ocorriam por lá.
Já no segundo desses textos, o posfácio da obra, Mat Johnson fala como se sentiu ingênuo por ter acreditado que, enquanto escrevia Incognegro, o efeito paralisante do racismo havia quase desaparecido em seu país, que o supremacismo branco, público e declarado havia acabado. Só que aí veio o comício “Up the Right”, em Charlottesville, Virginia, em agosto de 2017, aquele que culminou com o assassinato de uma mulher, a ativista e contramanifestante Heather Heyer, e ele percebeu que todo o horror que narrou em sua novela gráfica continuava vivo e forte. Portanto, passando assim a enxergar esse seu trabalho como “uma investigação do passado. Uma história de raça, identidade e terror nos EUA”.
Incognegro é uma obra que convida o seu leitor a mergulhar num lado tenebroso da história estadunidense. Junto da tensão, do suspense e da urgência já mencionados, é uma narrativa que também é construída com ação, ditando assim não só o clima da história, mas também seu ritmo. Mat Johnson e Warren Pleece são habéis ao trazerem à vida essa “investigação do passado”, colaborando, mesmo que um pouco, não só com o imaginário das histórias que tem as questões raciais como tema, mas também por nos lembrar que a história dos negros são múltiplas: há muita violência, mas há também muita coragem.