Itamar Vieira Junior retorna com mais protagonismo feminino em “Doramar ou a Odisseia”

“O silêncio não será a ausência da palavra, mas se apresentará como a música da solidão que não nos escapa.” — Itamar Vieira Junior

Após o sucesso esmagador de Torto Arado, clássico instantâneo que aborda entre outras coisas, a redenção, a ancestralidade e a libertação social e política, e que tinha como protagonistas as irmãs Bibiana e Belonisia, Itamar Vieira Junior retorna com Doramar ou a Odisseia, um livro-jornada que conta com doze contos, todos eles bem diferentes entre si — e também diferentes de Torto Arado — mas ao mesmo tempo, e estranhamente, tão similares a seu antecessor em temas, personagens e dramas. Sete contos foram publicados anteriormente em A Oração do Carrasco, finalista do prêmio Jabuti em 2018, e cinco são inéditos. O que chama atenção em Doramar novamente, mas sem surpresas — no melhor dos sentidos —, é o protagonismo universalmente feminimo.

Em “O que queima”, por exemplo, temos como protagonista uma senhora que constantemente invade sua antiga casa, mesmo sabendo que agora lá mora um novo casal. O apego às lembranças e a saudade de ter alguém para cozinhar faz a senhora cometer o crime de olhar com olhos lacrimejantes e saudosistas para um tempo que não volta. O conto mistura o humor da estranha situação, visto que a senhora assume que está sendo invasiva, mas continua repetindo as invasões, mesmo após a troca das fechaduras, mas, de pouco a pouco, um tom de paranoia kafkiana começa a impregnar a história quando o casal simplesmente não consegue sair daquela situação, chegando, inclusive, a questionar a realidade do que estão vivendo — se é que estão vivendo de fato, ou se a invasora existe de verdade.

Se questionamos o que é real ou alucinação em “O que queima”, em “Alma”, que considero o ponto alto em um livro repleto de pontos altos, somos apresentados à dolorosa realidade da protagonista Alma, uma escravizada que relembra todos os maltratos sofridos por ela enquanto foge da casa-grande após sua derradeira vingança contra seus senhores. Aqui, a escrita de Itamar quase beira o suspense, mesmo que de um modo anacrônico, visto que o suspense per se não é o que move a história. A cada curva precedida de um ponto final somos apresentados a novos fatos da vida de Alma, de seus amores, ou mesmo da falta deles, e de seus sonhos, caso consiga escapar com vida.

(Foto: Caroline Lima/Acervo Vogue)

Certa vez, a respeito da igreja, Martin Luther King Jr. disse que a missa no domingo é uma das horas mais segregadas, senão a mais segregada. Não precisamos voltar muito no tempo para encontrar exemplos de barbaridades que foram (e ainda são) cometidas pela igreja ou em seu nome. Semanas atrás, por exemplo, descobriram centenas de túmulos de crianças indígenas que foram assassinadas pela igreja católica e pelo governo canadense. Ao trazer esse pensamento para o Brasil podemos encontrar uma dura crítica de Itamar à igreja — e que remete à fala de Martin Luther King Jr. — que como sabemos, é historicamente racista e opressora, e nada fazia quando colonizadores exterminavam negros e indígenas. Não podemos esquecer de Tituba, uma mulher escravizada que foi a primeira pessoa a ser acusada de bruxaria em Salem — bem como a enorme quantidade de adolescentes e mulheres que foram queimadas e enforcadas sob a mesma acusação. Em determinado momento, uma protagonista pensa em voz alta: “não queria ser branca e perversa como minha senhora […] essa senhora muito branca com pó de arroz no rosto para ficar ainda mais branca, essa senhora tinha muitos deuses no seu oratório, tinha muitas cruzes espalhadas pela casa, tinha cruz no peito, tinha contas e cruzes nos punhos, adorava um deus branco como os que arrancaram minha avó da roça de inhame […] um deus branco que veio jogando corpos pretos pelo mar…” (p. 53). 



Em “A oração do carrasco”, um dos poucos contos protagonizados por uma figura masculina, somos apresentados a um pai de onze filhos, o último de uma linhagem de carrascos que atravessou gerações. Já no final de carreira, ele tenta passar ao primogênito os ensinamentos da profissão, e como teste inicial, obriga o assustado filho a matar um animal com um machado. O que se segue são momentos de terror e assombro devido ao possível fantasma do animal. Moradores de “uma terra que de tão seca é quase ar” (p. 59), os personagens são ligados uns aos outros por características exemplificadas por Itamar com exímio detalhismo: “O corpo desse homem, que se aproxima da meia-idade, se confunde com a terra sobre qual ele pisa […] que se mistura ao suor do corpo dos filhos, ao encardido do lenço sobre a cabeça da mulher, recobre as penas das aves que resistem e as carcaças mortas de sede espalhadas pelo chão.” (p. 59)

Resistência parece ser o sentimento que move todos os personagens de Doramar ou a Odisseia. Da resistência de escravizados que atravessam oceanos, e que historicamente se repetem na vida de imigrantes que fazem o mesmo caminho fugindo da neo-escravidão de seus países, e que são recebidos por um racismo sem fim em terras brasileiras, à resistência da pequena Joana D’arc — Itamar relembra várias figuras icônicas da história que tiveram suas vidas encurtadas por carrascos ao longo dos séculos. Temos, é claro, a resistência dos povos indígenas, que no conto “Na profundeza do Lago”, sofrem com o descaso dos ricos quando uma esposa negligenciada pelo marido vive em uma fazenda que é diretamente responsável por acabar com a água de uma aldeia, fazendo mães e filhos implorarem por alimento diariamente na localidade. A redenção, aliás, citada no primeiro parágrafo, referente a Torto Arado, está presente de forma belíssima no conto em questão.

Em última análise, Doramar ou a Odisseia (publicado pela editora Todavia) consegue a proeza de não se tornar uma sombra de Torto Arado — que por tratar da terra em maior ou menor grau vem recebendo comparações com seu antecessor — e funciona perfeitamente ao mesmo tempo como um trabalho independente e como um aperitivo para quem está sedento pelo próximo romance do autor, que segundo ele, se passa na Bahia do século 17, e aborda a construção de um mosteiro por povos escravizados. Se o ritmo de qualidade for mantido, Itamar pode claramente tornar-se o maior nome da literatura brasileira das últimas décadas.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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