Juan Rulfo escreve sobre morte, miséria e sobrevivência em “Chão em Chamas”

“Nenhum de nós diz o que pensa. Já faz um tempo que se acabou a nossa vontade de falar. Acabou com o calor. Eu mesmo conversaria à vontade em outro lugar, mas aqui dá trabalho. Aqui a gente fala, e as palavras ficam quentes dentro da boca por causa do calor que faz lá fora, e vão se ressecando na língua da gente até a gente ficar sem fôlego.” – Juan Rulfo

Publicado originalmente em 1953 pelo escritor mexicano Juan Rulfo, e lançado em 2021 no Brasil pela Record (com tradução de Eric Nepomuceno), Chão em Chamas é uma coletânea de contos que aborda uma série de temas, mas principalmente miséria, fome e a violência sofrida por uma população que está nas mãos de um regime ditatorial. As histórias se passam majoritariamente ao redor de vilarejos dentro do estado de Jalisco, região onde Rulfo foi criado, e chamam a atenção de imediato já nas primeiras páginas, pois o autor escreve de uma forma poética que deixa o leitor desolado devido às desgraças sofridas pelos personagens que enfrentam secas perversas, crimes, e extrema pobreza. As secas são tão intensas, que até mesmo os animais deste tipo de clima evitam ao máximo abandonar a tão valiosa e escassa sombra. O talento de Rulfo ao retratar o clima severo rende passagens plasticamente belas já nas primeiras páginas, quando ele escreve sobre a falta de chuvas: “Cai uma gota d’água, grande, gorda, fazendo um furo na terra e deixando uma placa como se fosse uma cusparada. Cai sozinha. Nós esperamos que continue caindo mais e buscamos com os olhos. Mas não cai nenhuma. Não chove. […] E a gota caída por engano é comida pela terra e desaparece em sua sede. (p. 14)

Os contos, em sua maioria, abordam a (não) vida de pessoas que tentam ao máximo sobreviver, mas que no fundo, bem lá no fundo, já sabem que estão mortas. Em “É que somos muitos pobres”, uma família arrasada pela falta de chuva acaba perdendo tudo quando a chuva finalmente aparece em forma de uma torrente que arrasta suas casas, seus animais e suas plantações. Como resultado dessa combinação de desastre natural e descaso do Estado, um pai lamenta a perda de uma vaca que, presente de aniversário para sua filha, tinha como pura e última missão, fazer com que sua filhinha tivesse algum dinheiro no futuro e não precisasse vender seu corpo como suas duas filhas mais velhas.

Juan Rulfo

A travessia e o remorso aparecem como tema central em dois contos: em “Talpa”, dois cunhados — e possivelmente amantes — fazem uma verdadeira peregrinação para que Tanilo, irmão do narrador, consiga ser curado de suas doenças pela Virgem de Talpa. Tanilo é descrito como um homem prestes a morrer, mas que usa todas as suas forças para conseguir chegar à santa e morrer em paz. Este é um dos contos mais brutais de Chão em Chamas, uma vez que o autor não economiza ao detalhar de forma gráfica as feridas do homem. Sentimos um alívio quando a história finalmente termina… apenas para sermos bombardeados novamente adiante em “Você não escuta os cães latirem”, conto sobre um pai que não tem uma boa relação com o filho que está prestes a morrer, mas não obstante, o carrega durante quilômetros à procura de um médico. No caminho pai e filho remoem traumas passados referentes à mãe, mais precisamente o modo com o que o filho, quando novo, tratava sua progenitora. Uma jornada repleta de dores físicas e emocionais. Curiosamente, este é um dos poucos contos em que encontramos trechos bem humorados, chegando até mesmo a gerar gargalhadas.

Em última análise, os temas aqui dialogam bastante com os contos de B. Traven — autor  misterioso de origem alemã que viveu no México à mesma época, e que escreveu vários romances, sendo O Tesouro de Sierra Madre o mais famoso —, principalmente Canasta de cuentos mexicanos (ainda sem tradução no Brasil), publicado três anos depois de Chão em Chamas. Se Traven escreve relativamente sobre os mesmos assuntos, com o acréscimo do fator anárquico, Rulfo escreve — ao menos aqui, visto que este é o meu primeiro contato com o autor — em forma de monólogos internos contendo diálogos pontuais. Essa escolha do autor pode causar um desnorteamento no leitor, e eu, sendo sincero, sofri bastante não apenas para me situar na maioria das histórias, como também para me conectar com o que Rulfo escreveu. 


Você gosta do conteúdo criado pelo Impressões de Maria aqui no blog, no YoutubeInstagram e demais redes? Gostaria de apoiar este trabalho? Você pode fazer suas compras da Amazon usando o link do blog sem pagar nada a mais por isso, ou apoiar o projeto Leituras Decoloniais no Catarse. Obrigada!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

R$ 5.829/mês 72%

Participe do Clube Impressões

Clube de leitura online que tem como proposta ler e suscitar discussões sobre obras de ficção que abordam assuntos como raça, gênero e classe, promovendo o pensamento crítico sobre a realidade de grupos minorizados.