Embora me considere um fã de ficção científica — seja em filmes ou livros —, não arrisco me classificar como um aficionado acerca do gênero na literatura, e como sabemos, o gênero sofre sistematicamente com o racismo estrutural, institucional e literário, de modo que a autora americana Octavia E. Butler nunca apareceu no meu radar. Para motivo de comparação, de acordo com uma pesquisa feita pela revista Fireside Fiction em 2015, apenas 2% das histórias classificadas como ficção científica foram publicadas por negros. Ou seja: infelizmente o gênero ainda é dominado por brancos. Todavia, nos últimos dois anos notei a onipresença de Kindred: Laços de Sangue (publicado pela editora Morro Branco, com tradução de Carolina Caires Coelho) em listas de melhores leituras anuais de pessoas que respeito e admiro, sejam elas amigos ou críticos literários, e ao pesquisar sobre a autora e os temas por ela abordados, senti a necessidade de lê-lo o mais rápido possível.
Em Kindred somos apresentados à narradora e protagonista Dana Franklin, uma escritora negra de 26 anos que é chamada repetidas vezes ao passado, mais precisamente em Maryland, durante a escravidão, 30 anos antes de seu teórico fim (teórico, pois sabemos que na realidade a escravidão nunca terminou, ganhou apenas uma nova roupagem). O presente de Dana é a Los Angeles da década de 70, em meio a livros bagunçados e um casamento recente com Kevin Franklin, um escritor branco de certo sucesso. Dana é constantemente teletransportada à escravidão sempre que Rufus, seu antepassado (ainda criança, mas ficando mais velho sempre que Dana regressa do futuro) está prestes a morrer. Logo, Dana percebe-se como a responsável não apenas pela sobrevivência dele, como também se sua própria, seja no passado ou no presente, pois sabemos que se qualquer um dos dois morrer no passado, ela deixará de existir nos anos 70. Evidentemente, por ser uma mulher negra, Dana precisa — além de todos os perigos que uma viajante no tempo já enfrenta — se preocupar com o fator raça: sua vida durante a escravidão será ameaçada duplamente por ser mulher e por ser negra.
Com mais de meio milhão de cópias vendidas, Kindred é um livro cheio de relacionamentos complexos. Vejamos Dana, por exemplo: para poder ficar mais próxima de Rufus, e assim cuidar para que ele não morra antes de engravidar Alice, sua tatataravó, ela precisa se passar por escravizada, e infelizmente, acaba correndo o risco de sofrer da pior forma possível (ou seja: na própria pele) a crueldade daquele período costumeiramente relativizado por pessoas brancas. Um dos vários aspectos interessantes do livro é o fato de que os personagens do presente precisam se adaptar ao passado, sejam aos costumes e às leis, ou à detalhes mais simples, como até mesmo roupas e caligrafia. Portanto, é sintomático que em determinado momento, ao escrever uma carta a pedido de Rufus, Dana precise pesquisar nas correspondências locais o estilo de escrita para que sua carta não se tornasse um anacronismo aos olhos dos comerciantes locais. E curiosamente a preocupação de Dana em não se tornar um anacronismo ambulante é escrita com um humor por si só anacrônico, se comparado com o tom geral da história.
Mais profundamente, destaco a percepção de Dana acerca de sua negritude e seu empoderamento no presente pós-segregação, mas que nada lhe servem no passado, muito pelo contrário, ela é considerada insolente por todos, até mesmo os escravizados com quem ela convive e eventualmente torna-se professora de leitura de seus filhos. Destaco também seu constante questionamento acerca de sua “fácil” adaptação em uma época tão triste da história (este, aliás, trata-se de um de seus questionamentos mais frequentes), principalmente quando ela passa a viver mais meses na casa grande a cada regresso à escravidão; e também sua percepção acerca de seu casamento inter-racial com Kevin. É interessante, aliás, prestarmos atenção, e compararmos as diferentes preocupações e comentários de Kevin e Dana acerca de uma possível vida em conjunto naquele período. Isso me lembra quando alguma pessoa branca diz que nasceu na época errada e que gostaria de ter vivido em séculos passados, sendo a Era Vitoriana a mais citada. Percebemos nesse comentário como o privilégio branco acontece até mesmo em viagens no tempo, uma vez que pessoas negras encontrarão apenas opressão, não importa a década do passado que eles estiverem.
A viagem no tempo criada por Octavia E. Butler é completamente diferente de tudo o que eu já havia lido. O realismo ali presente, ainda que pautado pela violência característica cometida pelos brancos, é talvez o grande atrativo da história. Em determinado momento, por exemplo, nos deparamos com uma camada a mais de realismo devido à inserção de figuras historicamente conhecidas como Harriet Tubman, Nat Turner e Frederick Douglass, que ainda eram crianças e viviam a apenas alguns quilômetros de distância, e Sojourner Truth, famosa ativista e abolicionista que ainda era uma escravizada.
Kindred — com sua magnífica edição de luxo, sua belíssima capa em vermelho vivo com duas mãos tentando um toque — exerce um poder sobre o leitor, de modo que se estivermos em uma livraria, seja ela física ou online, somos levados (puxados, me perdoem o trocadilho), ao inerente encontro de Dana e sua épica jornada de autoconhecimento e autocrítica.
Em última análise, apesar de nos fazer evitar trechos que percebemos estarem prestes a detalhar momentos violentos, a história é escrita de forma incrivelmente acessível enquanto aborda temas atemporais como feminismo, raça, maternidade, e por último, mas não menos importante, a relação entre o poder e o amor. Logo, não é surpresa que o livro seja tão popular desde sua publicação, sendo inclusive usado em cursos em escolas e faculdades americanas até os dias atuais.
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