Criado na Praça Seca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, Henrique Marques Samyn é, além de poeta, crítico literário, professor do Instituto de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – a querida UERJ –, pesquisador especialista em estudos sobre gênero e raça, sendo coordenador do projeto LetrasPretas, importante aparato de divulgação da produção cultural e intelectual de mulheres negras, e organizador de Por uma revolução antirracista: uma antologia de textos dos Panteras Negras (1968-1971), editado em 2018. Levante, publicado em 2020 pela editora Jandaíra, é um belíssimo livro de poemas que cantam com orgulho o difícil percurso da diáspora negra dos tempos dos navios negreiros até os dias de hoje.
Antes de falarmos dos aspectos textuais da obra, faz-se necessário dizer que Levante é, fisicamente, um livro bonito à beça. O projeto gráfico, executado com primor por Alberto Mateus, é um tesouro à parte e que acrescenta muito ao todo. Faz cama aos textos, tornando a experiência da leitura mais imersiva. Um grande acerto. Isso posto, vamos aos poemas.
Levante é dividido em seis partes. São elas: “Desterro”, “Cativeiro”, “Ancestralidade”, “Resistência”, “Herança” e “Liberdade”. Como é possível presumir, cada bloco circunda um tema maior que liga todos os poemas nele presente. O mesmo acontece com todos os blocos ao serem pensados em conjunto, formando um elo que liga esses seis temas maiores, levando à insurreição poética de Samyn que culmina no livro.
Em “Desterro”, temos poemas que tratam do início de uma das maiores violências cometidas pela humanidade, o sequestro de negros africanos para serem escravizados em terras hoje convencionalmente chamadas de americanas. Momento tenebroso e de muito terror que podemos reconhecer em versos como “No porão, amontoados, / os que jamais voltarão” e “Embarcai também as crias: / as de peito e as de pé.” Mas o conselho também vem: “Não esqueçais / que o sangue que rega vossa pele / nasce em terras distantes.”
“Cativeiro” é o segundo tempo desse jogo cruel que começa no bloco anterior. Quando aqueles que para aqui foram forçados a vir precisam compreender e apreender a sua nova realidade. E isso começa justamente pela senzala, que não por acaso é o título do primeiro poema dessa parte. Poema esse de duas estrofes de oito versos cada que por meio de sua rítmica, nos situa naquele espaço e conjuntura. Espaço que também se faz presente em poemas como “Pelourinho”, que junto com outros, como “Suplício”, nos mostra que a morte não é temida; quiçá, desejada. Afinal, com ela a liberdade se avizinha.
A terceira parte de Levante se chama “Ancestralidade”, na qual os poemas recebem como títulos, nomes de importantes figuras de nossa história, como Zumbi, Aqualtune, Dandara e Zacimba Gaba, na qual temos alguns versos poderosos, como “Nasce toda a resistência / do amor à liberdade” e “Tem a benção dos bons deuses / quem mata seus senhores”.
A “Resistência” é marcada pela ousadia, coragem e força. Aqui os versos falam dos quilombos, de Palmares, dos malês, dentre tantas outras movimentações e heróis. Já em “Herança” encontramos linhas que tratam das consequências dos 388 anos de escravidão que assolaram o Brasil. Não podemos esquecer nem que “Nos netos dos teus netos / ainda pesarão as correntes”, nem que essa é “Uma noite que dura séculos – / tantas gerações abrigadas, / empilhadas sob as marquises”.
Por fim – e enfim –, a “Liberdade”. Os poemas desta parte são intitulados por numerais que vão do I ao IX, e nos lembram que “Pássaros negros não voam sozinhos: / vivem sempre em revoada”. Nesses nove poemas moram a esperança e a fé de que, apesar de tudo e de qualquer coisa, uma outra história será – e está sendo – escrita.
Segundo Cidinha da Silva, que assina o prefácio da obra, “este Levante, de Henrique Marques Samyn, proporciona um túnel do tempo que tanto pode ser trafegado do passado para o presente, quanto deste para aquele”. E completa: “Nos dois caminhos, nossa memória ressoa e amplia os sentidos de compreensão dos mundos forjados por nossos ancestrais e por (para) nós”. Essa leitura é muito interessante, pois nos permite ler o conjunto de Samyn tanto por uma perspectiva que a acompanha a história cronologicamente quanto por outra que enxerga nesse caminho inverso uma espécie de retorno no qual se busca compreender o passado para pensar o hoje e planejar o amanhã. Em outras palavras, ouvir os mais velhos.
Henrique Marques Samyn e seu Levante nos lembra que a literatura também é política. As escolhas do poeta não nos deixam dúvidas: ele sabe muito bem para quem e por que escreve. Os signos dos quais faz uso e, por consequência, as imagens que cria, nos põem diante das chagas que o nosso país nunca tratou. Voltar nossos olhos para os episódios aos quais Samyn dedica seu trabalho é uma maneira de seguir tentando compreender seus contextos para nos aproximarmos cada vez mais da possibilidade de suturar todas as feridas que ainda temos abertas, e não deixar que as memórias nos escapem é só o começo. O levante de Samyn é o levante de todos nós.