Livros e filmes para o Dia dos pais

Minha relação com meu pai nunca foi ideal. Na verdade, nunca foi saudável. Ele, carregando o peso de seus próprios traumas — inclusive de também não ter tido uma relação saudável com o próprio pai — nunca soube, ou não nunca quis uma relação tradicional entre pai e filho. Eu diria que temos uma relação estritamente silenciosa. Porém, uma tradição que eu construí desde garoto foi de assistir filmes com ele. Felizmente gostamos de três gêneros cinematográficos produzidos à exaustão desde que me entendo por gente: ação, faroestes italianos e filmes de guerra. Já perdi as contas de quantas horas passamos juntos — ainda que sem trocar uma só palavra — assistindo e reassistindo a filmes que são considerados ápice da masculinidade tóxica “de antigamente”, com ação desenfreada e com protagonistas durões. Faroestes de Sergio Leone protagonizados por Clint Eastwood e Lee Van Cleef? Já assistimos todos! Filmes de guerra no estilo de Os Doze Condenados, e Fugindo do Inferno eram nossos preferidos. Basicamente, qualquer produção sessentista e setentista de ação. Além da falta de uma boa relação com o meu pai, o que eu mais sinto falta foi não ter conseguido torná-lo um fã dos filmes Noir preto e branco. Mas, ninguém é perfeito. Nem meu pai, muito menos eu.

Curiosamente, os filmes e os livros listados abaixo não se encaixam nesse estilão descrito acima. Pelo contrário, são obras que tentam a todo custo colocar um fim nessa categoria praticamente obsoleta. Nas produções de cinema esse estilo de ator já não existe, e como disse Quentin Tarantino, em entrevista, já não existem mais atores durões como antigamente, e que quem mais se aproxima de Charles Bronson é a atriz Sul-africana Charlize Theron. Na sociedade atual, os machões de antigamente — aqueles que foram criados em uma sociedade machista, e logo, reproduzem os ensinamentos que tiveram; aqueles que fogem de seus sentimentos, aqueles que não choram — também parecem estar com os dias contados. Não. Os livros abaixo, com exceção de Bom dia, Tristeza, que é uma leitura leve de ficção, foram milimetricamente pensadas para ajudar os pais — novos ou velhos — a repensar o modo como foram criados, e se é realmente saudável passar as masculinidades tóxicas para toda uma nova geração de pessoas; e os filmes, por outro lado, têm menos a ver com a paternidade per se, e mais a ver com o ato de assisti-los com nossos pais, de nos remeter à épocas que podemos, se possível, relembrar com certo carinho.

Bom, vamos à lista.

LIVROS

1 – SEJA HOMEM, 2020.
AUTOR: JJ BOLA

Escrito por JJ Bola em 2020, e publicado pela editora Dublinense, Seja Homem é um livro que precisa ser lido não apenas por pais, mas também por namorados e adolescentes. É um livro que provavelmente será distribuído em salas de aula em um futuro bem próximo. JJ Bola expõe a masculinidade como uma performance onde os homens são socialmente condicionados, e com vários exemplos de práticas culturais e experiência própria com amigos, Bola aponta vários mitos que são passados de geração em geração, como aquele que proíbe os garotos de chorar ou de demonstrar fraquezas. A masculinidade ensinada em uma sociedade cisheteropatriarcal não irá trazer nenhum benefício para os homens a longo prazo, podendo causar até mesmo problemas na saúde mental. Seja Homem é um grito imprescindível para redefinir as masculinidades, e um texto mais aprofundado sobre o livro, escrito pela Maria Ferreira, pode ser lido aqui.

Confira também esse vídeo:

 

2 – O HOMEM SUBJUGADO: O DILEMA DAS MASCULINIDADES NO MUNDO CONTEPORÂNEO, 2018
AUTORA: MALVINA E. MUSZKAT

Dialogando em temas com Seja Homem, O Homem Subjugado aborda o tema da violência sob a perspectiva masculina na dinâmica dos relacionamentos, procurando maneiras mais eficientes de se promover o diálogo e evitar o confronto. Perambulando entre temas como sociologia, antropologia e psicanálise, a autora demonstra como a ideia da masculinidade foi construída ao longo dos séculos e como os homens foram proibidos de demonstrar e até mesmo de reconhecer que possuem medos e fraquezas. Precisamos educar os homens com comportamentos diferentes dos usualmente atribuídos a eles em nossa sociedade machista. Por que haveria apenas uma forma de ser homem se não há apenas uma forma de ser mulher?

 

3 – BOM DIA, TRISTEZA, 1954.
AUTORA: FRANÇOISE SAGAN

Escolhi Bom dia, Tristeza porque se trata de uma leve e breve leitura de ficção. Mas não apenas por isso. Escrito por Sagan quando ela tinha apenas 18 anos, o romance foi um sucesso imediato na França, ganhando uma adaptação para o cinema dirigida por Otto Preminger em 1958. Na história temos Cécile, uma precoce adolescente de 17 anos, e seu pai, Raymond, um solteirão namorador. Ambos, pai e filha são adeptos ao amor livre, belos carros e futilidades. Porém, durante um verão avassalador, Raymond decide se casar, e Cécile e seu namorado decidem fazer de tudo para que ele não se case. Bom dia, Tristeza escandalizou a França dos anos 1950 porque Cécile, nossa heroína, é uma jovem que não apenas luta para ter sua liberdade sexual, mas também rejeita qualquer tipo de relação que coloque a mulher abaixo do homem — algo que deveria ser ensinado por e para todos os pais. Um clássico absoluto, o livro foi considerado pelo Le Monde um dos 100 livros mais importantes do século.

FILMES

1 – COWBOYS, 2020
DIRETORA: ANNA KERRIGAN

No início escrevi sobre as incontáveis horas que passei assistindo faroestes com meu pai. O que me trás a Cowboys. Escrito e dirigido por Anna Kerrigan, esse é um filme necessário para os dias atuais. O filme é uma espécie de faroeste moderno e conta a história de um drama familiar envolvendo um menino trans chamado Joe (interpretado por Sasha Knight, um ator mirim trans de 10 anos), seu pai, Troy, que sofre de transtorno bipolar e Sally, sua mãe transfóbica que recusa a aceitar que Joe viva a sua verdadeira identidade. Ainda que bem intencionado, Troy foge com seu filho em um cavalo para o meio das florestas de Montana e é perseguido pela polícia. Cowboys faz parte de uma — finalmente — crescente onda de novas produções que estão escalando pessoas trans para papéis escritos para pessoas trans. Existem muitos atores e atrizes trans adultos e adolescentes atuando em filmes e séries, mas papéis para crianças trans são ainda praticamente inexistentes, por esse motivo escolhi Cowboys. Além de abordar a paternidade, temos a representatividade tão necessária atualmente. Destaco a cena em que Joe revela para seu pai que não é uma menina, e sim, um menino trans. É uma cena que com certeza foi uma das melhores do ano passado.

 

2 – GAROTA SOMBRIA CAMINHA PELA NOITE, 2014
DIRETORA: ANA LILY AMIRPOUR

Seguindo no clima de ressignificações de faroestes, chegamos à Garota Sombria Caminha Pela Noite, uma mistura de faroeste de terror com vampiros. Dirigido por Ana Lily Amirpour em 2014, o filme ganhou popularidade devido à sua inventividade em misturar cultura pop com faroeste e terror, e também devido à equipe de marketing que fez uma campanha de divulgação o tratando como o primeiro faroeste iraniano. Na cidade fictícia iraniana Bad City conhecemos uma estranha história de amor entre uma vampira, simplesmente chamada de The Girl e um traficante de drogas. Totalmente falado em Farsi e filmado e preto e branco, Garota Sombria Caminha Pela Noite é considerado por muitos especialistas a melhor estreia na direção dos últimos 10 anos.

 

3 – AS FACES DE TONI ERDMANN, 2016
DIRETORA: MAREN ADE

As Faces de Toni Erdmann, lançado em 2016, é um filme curioso. Com quase 180 minutos — uma duração anormal para comédias — somos apresentados à história de Conradi, um professor de música divorciado de meia-idade que é conhecido por pregar peças em todos e usar várias personas nessas pegadinhas. Após a morte de seu cão, Conradi decide tentar se aproximar de sua filha, Ines Conradi, uma executiva no ramo de petróleo. O problema é que Conradi cria uma persona chamada Toni Erdmann e passa a se apresentar para os amigos de sua filha como um coach motivacional. Considerado sátira por uns e dramédia por outros, Toni Erdmann é a opção perfeita para o cinema de domingo pois aborda a tentativa de um pai, já na velhice, em se reconectar com sua filha. 


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2 respostas

  1. Eu gosto MUITO de suas indicações, William, justamente porque fogem demais do que eu costumo consumir. Rs.
    Exceto por “Seja Homem”, que eu já tinha visto Mazinha apresentar, eu nunca tinha escutado falar nos outros livros. Me chamou muito a atenção o “Bom dia, Tristeza”. Eu fiquei super com vontade de ler! Demais mesmo!
    Bacana você começar o texto falando sobre sua relação com seu pai. Acaba nos dando a sensação de intimidade, e preparando o coração pras indicações a seguir, compreendendo, mesmo que pouco, o quanto elas podem ser importantes pra você e o motivo.

    Obrigada por mais essa produção de conteúdo massa!

    Cheiro.

    1. Lorena, obrigado por sempre tentar passar por aqui me dando aquela moral!
      E bom dia tristeza é bem interessante.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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