Escrito pelo escritor britânico-ganense Caleb Azumah Nelson, sendo também sua estreia, Mar aberto (Morro Branco Editora, tradução de Camila von Holdefer) é um romance que narra o encontro e a intimidade construída entre dois jovens negros britânicos. Por meio de uma escrita que se quer poética, o autor se vale de temas sensíveis à comunidade negra para dar forma a sua história.
Não há muito mistério no enredo de Mar aberto. Desde o princípio somos convidados a acompanhar o desenvolvimento dessa relação que, já de cara, a entrega ao desejo nos parece iminente. O que nos resta é descobrir os desdobramentos que surgirão na vida em comum das personagens centrais não nomeadas do romance desde o primeiro encontro dos dois — ela era namorada de um amigo dele, que não conseguiu segurar o ímpeto de pedir para que fossem apresentados. Com esse mote, vemos pouco a pouco o desenvolvimento de ambos enquanto se apaixonam e se envolvem de maneira única e intensa.
Apesar do grosso da narrativa ser tal relacionamento, outras questões imprescindíveis permeiam a história. Azumah Nelson aproveita o seu enredo para discutir o que é ser negro no mundo — nesse caso, o que é ser negro em Londres — e ter que lidar com as suas próprias subjetividades, o racismo e a violência daqueles que insistem em te ver, mas não te enxergar. Temas esses que, não raro, causam sofrimento.
Mas se as escolhas do Azumah Nelson em relação ao seu enredo são, por si só, um bom argumento, os outros caminhos formais pelos quais percorre são vacilantes. A começar pela escolha da voz narrativa, que é esquisita. Não pelo seu esforço de uma narrativa em segunda pessoa, mas porque ela, por vezes, soa deslocada. Ela fala direto ao protagonista (sempre se referindo a ele como você), e, justamente por isso, é comum o estranhamento: se isso acontece a ele, por que essa voz precisa contá-lo o que ele próprio viveu? E essa é só uma das incongruências presentes no romance. O curioso é que os outros pontos que geram algum incômodo em Mar aberto são os mesmos que trazem bons momentos, por mais contraditório que isso seja.
Confira também outra perspectiva sobre o livro
Comecemos por aquilo que mais se destaca: o trabalho de linguagem. Caleb Azumah Nelson não se furta em tentar ser poético. E consegue, criando imagens muito bonitas. Acontece que há uma exacerbação nisso. Embora isso possivelmente jamais incomodará o leitor que busca ou ama essa qualidade de poesia em meio à prosa, para aqueles que não têm essa predileção, a escrita do autor pode soar forçada, tornando-se repetitiva. Algo que, sem dúvidas, terá efeito segundo o gosto do freguês. Porém, ao mesmo tempo em que há essa verve na escrita de Azumah Nelson, há também uma descrição costumaz. Sabemos que a regrinha “show, don’t tell” não precisa ser levada à risca. Na verdade, é justamente na subversão de máximas como essa que o novo se cria. Contudo, o contar sem mostrar é a base que sustenta boa parte da escrita de Mar aberto. A frequência com que as coisas são entregues mastigadas ao leitor, sem fazê-lo ter a experiência de criar tais cenas, salta aos olhos. Fica difícil não perceber.
E já que falamos de redundância, esse é outro quesito que incomoda em Mar aberto. Há diversos argumentos e ideias, quando não, frases ou expressões, que são repetidos com frequência no romance. É óbvio que este movimento é deliberado por parte do autor. Uma tentativa de sinalizar a importância de certos detalhes ou, até mesmo, de se criar uma espécie de refrão com eles, quiçá querendo soar musical. Contudo, mais uma vez, chega a um ponto em que isso se torna cansativo, causando até mesmo a impressão de que Azumah Nelson está à deriva, sem saber para onde ir com a sua narrativa.
O outro ponto que é ao mesmo tempo forte e fraco em Mar aberto são as referências que o autor traz para o seu texto. É evidente a paixão e o orgulho de Azumah Nelson pela cultura negra. E a importância de reforçarmos esses signos de maneira positiva não tem prazo de validade. O autor acerta em abraçar essa realidade, fazendo questão de prestar homenagem às suas referências pessoais ao longo do romance. Mas, realçando a inconsistência como consistência em seu trabalho, mais uma vez, a maneira como Azumah Nelson escolhe fazê-lo tira a força de tal atitude. Outra vez, o excesso é parte do pecado aqui. No começo, é bom ver o nome da Zadie Smith aqui, do Kendrick Lamar por ali, mas à medida que a história avança, a quantidade de citações e referências se tornam repetitivas. É Saidiya Hartman descreve, é Teju Cole descreve, é James Baldwin disse… Às vezes um em cima do outro. E o que até certa altura soava como exaltação passa a parecer apenas algo jogado ao léu.
Apesar dessas questões acima citadas, Mar aberto é um esforço de seu autor em criar uma narrativa que, embora ainda toque nos temas de praxe a histórias que tratam das pessoas negras — como a violência policial ou das ruas, e o racismo de uma forma geral —, vá além dos lugares comuns, ainda que haja alguma projeção idealizada. Caleb Azumah Nelson busca dar profundidade às suas personagens, o que amplifica as suas subjetividades, tornando-as esféricas e não planas, o que por vezes nos faz sentir por eles de modo variado: há momentos de empatia, mas também há momentos em que nos irritamos, o que é bom, pois isso é um signo de uma vivacidade tangível. O problema é quando essa irritação é causada pelo todo — as famigeradas questões formais — e não algo provocado de forma intencionada por seu autor. Em suma, Mar aberto parece ser daquelas obras oito ou oitenta: ou se gosta (e muito) ou não se gosta (podendo ser um tanto também).