Masculinidade negra em “A gente é da hora”, de bell hooks

“Ninguém no mundo, ninguém na história, conseguiu sua liberdade apelando para o senso moral das pessoas que o oprimiam.” – Assata Shakur

Ao ser interrogado sobre a relação entre brancos e negros norte-americanos no contexto Pós-Direitos Civis em uma rara entrevista concedida à jornalista branca Sylvia Chase para ABC em 1979, James Baldwin responde de forma enfática, “Eu não tenho nada contra você. Eu não a conheço pessoalmente. Mas eu a conheço historicamente.” Esta resposta de Baldwin torna-se essencial no texto de bell hooks, uma vez que é imperativo ter um certo grau de interesse político-racial nas atrocidades cometidas não por esta ou aquela pessoa branca, mas sim pela Instituição Homem Branco, especificamente ao seguirmos pela linha de pensamento que a autora irá elaborar em A gente é da hora: homens negros e masculinidade.

Publicado originalmente em 2004 e no Brasil em 2022 pela editora Elefante, com tradução de Vinícius da Silva, a obra é formada por 10 ensaios que abordam de forma profunda — mas sem nunca afastar o leitor com academicismo desnecessário — as questões centrais das experiências de homens negros norte-americanos formados pelas ideias brancocêntricas, machistas, homofóbicas, capitalistas e cisheteronormativas que explodiram após a década de 60. Munida de uma abordagem direta e poderosa, hooks propõe uma tentativa de entender as complexidades das masculinidades negras ao explorar o impacto das estruturas socioculturais — muitas vezes opressivas — na vida dos homens negros, inclusive aqueles que se recusam a buscar uma desconstrução sexual, cultural e patriarcal. 

Através destes ensaios — antecedidos por prefácios de nomes como Lázaro Ramos e Túlio Custódio — hooks estabelece diversas conexões sociais, históricas e culturais que revelarão, por sua vez, várias interseções entre a masculinidade negra, o racismo, o sexismo e outras formas de opressão, mas também destacando as lutas e as — infelizmente, poucas — conquistas dos homens negros ao longo da história norte-americana. bell hooks vai, também, jogar luz à eterna busca pela paz interior e pela aceitação da identidade do homem negro que enfrenta as adversidades em uma sociedade que o emascula década após década. Quem sofre neste processo, afirma a autora, é a mulher negra — que enfrentará os atos de violência de seu marido/parceiro sempre que este se entender como um fracasso perante aos padrões estereotipicamente patriarcais da sociedade.

Na entrevista de James Baldwin citada no início deste texto, o autor diz que o sentido de realidade dos americanos é ditado pelo que eles tentam evitar. Nota-se aí um primeiro paradoxo, pois como podemos enfrentar algo que não reconhecemos como real? Em maior ou menor grau, é o que Cornel West argumenta em Questão de raça (1994) e bell hooks dá continuidade em A gente é da hora. Segundo West, a partir da década de 60 as grandes instituições negras — sejam elas igrejas, mesquitas, ou simplesmente as próprias famílias negras — conseguiram, de certa forma, se proteger do bombardeio hegemônico dos brancos, mas sem deixar de sofrer severos danos colaterais, sendo o principal deles se recusar a discutir sua própria sexualidade. Como consequência, surgiu uma marginalização conjunta contra o corpo negro e o local onde este corpo era buscado: nas ruas, nos becos e salões de dança, etc. De forma sucinta, solapar sua sexualidade foi uma questão de sobrevivência, e para os negros, sobreviver — citando o próprio West—, “requer que eles se adaptem à América branca e sejam aceitos por ela.” 

Cornel West. Créditos: Francine Orr/Los Angeles Times/Getty Images

Considero apropriada esta interseção entre os pensamentos de West e bell hooks acerca da sexualidade dos homens negros, uma vez que será muito mais fácil de entender os argumentos e as críticas da autora contra o papel destes mesmos homens negros na perpetuação de estereótipos sexo-raciais, principalmente tendo em mente que quando os homens negros usam sua fome sexual como uma forma de poder, eles estão, na verdade, em mais um paradoxo, reforçando os mitos racistas e sexuais sobre a sua própria sexualidade.

Ao escrever sobre a relação entre integração racial e seu impacto nos papéis de gênero, hooks afirma, “É necessário enfatizar mais uma vez que os homens negros que estão mais preocupados com a castração e emasculação são aqueles que absorveram as definições patriarcais supremacistas brancas de masculinidade.” A partir desta afirmação encontraremos no texto da autora importantes ideias que jogarão luz à relação entre sexo, poder e masculinidade negra, pois a partir de uma perspectiva crítica, ela utiliza diversos meios para desvendar os efeitos devastadores causados pelo que ela chama de “sociedade patriarcal capitalista supremacista branca imperialista”, um fenômeno que constrói e — paradoxalmente — castra o falo negro no exato momento em que ele goza de um falso poder libertador que lhe é oferecido em certas áreas predominantemente cisheteronormativas (esportes, por exemplo). Não obstante, este pseudo-poder é usado contra o homem negro como uma prisão de branquitude que domina, vigia e pune. É evidente que bell hooks nunca retira dos homens negros a sua parcela de culpa na perpetuação destes estereótipos sexuais criados no e pelo imaginário branco norte-americano, apesar de deixar claro que devido ao modo como outras gerações de homens negros perpetuavam a violência na criação dos filhos — como recurso para os proteger do racismo —, muitos destes homens negros sequer foram apresentados a outro meio de expressar seus sentimentos a não ser a violência, seja ela física, mental sexual ou espiritual.

Apesar de usar alguns textos de escritoras como Lorraine Hansberry e Michelle Wallace, hooks está mais interessada no que autores homens escreveram sobre suas vivências, e é a partir destes textos que ela vai, através de uma série de análises, sejam elas literárias ou musicais, argumentar como a máxima do “matar ou ser morto” é imposta a jovens negros desde a infância, seja pela mídia, seja pela educação precária nas escolas ou até mesmo na criação bifurcada recebida dentro de casa, já que de modo geral, estes jovens são superprotegidos pelas mães, mas são maltratados ou até mesmo abusados pelos pais que lhes impõem a masculinidade patriarcal repleta de misoginia. O resultado não poderia ser outro: estes jovens negros irão mascarar todas as suas nuances e usar a violência como principal forma de proteção. Serão incapazes de amar e irão continuar o círculo vicioso que consiste em perpetuar os estereótipos raciais e sexuais que os seduziram em primeiro lugar.

Um dos muitos pontos altos do livro ocorre quando hooks usa Soul on Ice, livro de memórias de Eldridge Cleaver, um dos primeiros líderes dos Panteras Negras, para ilustrar o debate acerca da educação violenta e do uso do sexo pelos homens negros como vingança aos brancos. Hoje em dia considerada uma das obras seminais da literatura negra norte-americana, Soul on Ice chocou a sociedade norte-americana à época de sua publicação devido aos relatos de Cleaver em que ele afirmava que quando estuprava mulheres negras, entendia o ato como um mero treino preparatório para estuprar mulheres brancas, visto que apenas assim poderia vingar-se do Homem Branco. hooks argumenta de forma perspicaz que este comportamento masculino adotado por Cleaver celebrava e reforçava a imagem estereotipada do homem negro como estuprador hipersexual e homofóbico quando ele começava a se livrar deste mito iniciado, ao menos em parte, através de um lugar de exoticidade recorrente no cinema clássico norte-americano.

Eldridge Cleaver. Créditos: Reprodução.

Partindo destes estereótipos sexo-raciais, bell hooks oferece uma visão profunda — às vezes controversa, é verdade, mas nunca enfadonha —, ao comparar dois ritmos musicais intrínsecos à historicidade negra: o Blues e o Rap gangsta. Baseando-se no argumento de que, ao contrário do Blues, que promovia uma reconexão com uma masculinidade mais sentimental (não à toa “blues” pode significar “tristeza”), e por conseguinte, não tóxica, o Rap gangsta era — e ainda é — um dos principais motivadores da violência sofrida pelas mulheres negras (e aqui estão incluídas cis e trans) e pelos homossexuais, pois reforça a misoginia, a cultura do estupro e a falsa ideia de poder citada por Cornel West — de que será no sexo que o homem negro finalmente será livre.

Ao analisar os estereótipos raciais encontrados em King Kong, filme lançado pela Universal em 1933, a autora Robin Means Coleman escreve, “…’King Kong’ estendeu o ataque metafórico aos homens negros por meio das imagens de um grande gorila negro perseguindo uma mulher branca […] O filme também continua a confinar os entendimentos acerca da negritude na primitividade, e sua sexualidade na selvageria…” (p:94). Daí, claro, uma vez que o cinema está sendo abordado, poderíamos — apesar de correr o risco de criar demasiadas camadas dentro de camadas —, relacionar a citação anterior de Robin Means Coleman com a leitura que bell hooks faz do tratamento que O. J. Simpson — um ator negro — recebeu da mídia nos anos 90 ao ser acusado de assassinar sua esposa, Nicole Simpson — uma mulher branca e loira. Esta relação sugerida por hooks, claro, poderia dar continuidade a outra pertinente discussão — que não me aprofundarei: àquela em que os homens negros, principalmente os bem-sucedidos, tendem a abandonar a mulher negra que esteve ao seu lado durante toda a sua vida para buscar a todo custo um relacionamento com a sua Ann Darrow particular.

Apesar de todos os ensaios possuírem importância significativa por toda a extensão da obra, destaco alguns deles por se tratarem de textos que mais dialogaram comigo. São eles: “Patriarcado da plantation”, em que hooks aborda a masculinidade negra partindo das políticas de gênero da escravidão; “Cultura gangsta: participação nos lucros”, em que, através de uma profunda análise sobre a trama da soberba peça de teatro “A raisin in the sun”, de Lorraine Hansberry, dá-se inicio à uma interessante discussão sobre a influência do capitalismo na maneira como homens negros se apegam à ideia de ganhar dinheiro de modo fácil; “Não me obrigue a machucar você: homens negros e violência”, em que hooks investiga as possíveis origens da violência nos homens negros; “Coisa de homem: além da performance sexual”, onde ocorre o fabuloso estudo sobre o papel dos homens negros no fortalecimento de estereótipos sexuais criados pelos brancos; e por fim, “Curando a ferida”, ensaio que vai abordar a libertação masculina negra partindo da ideia de que a principal dificuldade enfrentada pela população negra reside no receio que homens negros sentem de perderem o pouco poder que lhes é atribuído quando fazem parte de uma sociedade patriarcal.

Em A gente é da hora, bell hooks cria uma perspectiva crítica e analítica que rompe com os estereótipos dominantes, e com seu modo direto, descontraído e controverso nos fornece meios riquíssimos para entender como homens negros podem recuperar sua individualidade sem que sua masculinidade seja contestada a qualquer sinal de vulnerabilidade — uma conquista que fará com que a mulher negra, bem como as novas gerações de pessoas negras, também deixem de sofrer pela falta de amor de todos os tipos.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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