Mulheres de cinzas- Mia Couto

Este é o primeiro livro da trilogia As Areias do Imperador, em que o autor rememora os tempos em que Moçambique era governada pelo imperador Ngungunyane, até ser derrotado por Portugal.
Imani e seus familiares moram em Nkokolani e são da tribo dos VaChopi. A área em que moram é disputada entre os portugueses e os guerreiros VaNguni, comandados pelo imperador Ngungunyane. No entanto, os VaChopi se aliaram aos portugueses e esperam proteção da coroa portuguesa. Para isso, o sargento Germano de Melo é enviado para Nkokolani. Quando chega, Imani, por ter aprendido muito bem o idioma português, ensinado outrora pelos padres missionários, serve a Germano como intérprete.
“Os brancos podem falar de variados modos: diz-se que têm sotaques. Só a nós, negros, não é permitido outro sotaque. Não basta falarmos a língua dos outros. Temos que, nesse outro idioma, deixar de sermos nós”. -(p.341)
Os capítulos são intercalados entre Imani e Germano. A narrativa feita por Imani é de um ritmo poético tocante, em que transparece sua independência e determinação. Tem apenas quinze anos e apesar de ser tão nova, já tem que pensar em filhos e casamento, mas aos poucos vai se descobrindo e desconstruindo. Nos capítulos de Germano, a narrativa se dá de forma epistolar, em que ele relata ao seu superior tudo que acontece em Nkokolani. No início, as cartas têm um tom formal, mas na medida em que o tempo vai passando, elas vão adquirindo um tom mais informal.
Em um determinado momento, Imani e Germano começam a se sentirem atraídos um pelo outro, mas se veem obrigados a lidar com questões referentes à raça e à cultura, não podem ignorar que estão no meio de uma guerra e é mais difícil para Imani lidar com essa atração porque não quer ser vista como a traidora da tribo que se apaixonou pelo colonizador, mas se por um lado pensa que precisa lutar contra esse sentimento, por outro, é encorajada pelo pai a investir numa provável relação com Germano, por ser algo vantajoso não só para ela, mas para toda sua tribo.
“Confesso começar a sentir uma atração por Imani, a moça que visita o nosso posto. E não é apenas um sentimento carnal. É algo mais intenso, mais total, algo que jamais havia sentido por uma mulher branca. Talvez, admito, seja esta pulsão uma consequência da solidão que me foi imposta. Ou talvez seja um delírio de prisoneiro. A verdade, porém, é que essa rapariga se insinuou de um modo respeitoso e subtil e, aos poucos, se foi entranhando na minha alma a ponto de não sonhar senão com ela”. -(p.170)
O livro também nos faz refletir sobre a condição das mulheres durante as guerras. Não são só os homens que sofrem, as mulheres sofrem tanto quanto ou até mais que eles, pois, por vezes, são violadas, perdem maridos e filhos e precisam lidar com o machismo constante da tribo que fazem parte.
O autor resgata muito da tradição oral moçambicana com a inserção de fatos fantásticos, sejam eles mitos ou crenças, o que confere uma riqueza inegável de cultura que se pode ser aprendida com esse livro. Além disso, os personagens são bem desenvolvidos, possuem uma carga psicológica densa, com personalidades próprias.
É um livro que mesmo com sua parcela ficcional, ensina muito mais sobre a história de Moçambique do que muitas escolas brasileiras, que ainda que seja lei, nos negam constantemente o ensino da cultura africana.
A capa é de um vermelho vivo que dialoga com o enredo. A diagramação é simples e as letras possuem um bom espaçamento, com uma revisão excelente.
Agora só me resta esperar, com certa ansiedade, o lançamento dos demais livros.

4 respostas

  1. A capa é muito interessante. Quando comecei a ler a resenha, não imaginei que iria me interessar pelo livro, pois é, foi um engano. A história parece ser intensa e forte. É terrível ter que esperar o próximo volume de um livro que gostamos muito. Parabéns pela resenha e pelas dicas, que estou adorando.

    atraentemente.blogspot.com

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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