Dedico esta resenha à querida Mariana Moreira do Carmo, uma apaixonada pela obra do Júlio Emílio Braz, sendo também uma de suas principais divulgadoras.
Júlio Emílio Braz é um daqueles autores que nos perguntamos como é que o seu nome não está na boca do povo. Para os que ainda não o conhecem, ele é autor de mais de cento e cinquenta obras, sendo o que seu trabalho de maior expressão é voltado para o público infantojuvenil. Escrevendo com esses leitores em mente, acabou recebendo o Prêmio Jabuti em 1989 pela obra Saguairu (Editora Mostarda) como também conquistou outros prêmios na Alemanha, Áustria e Suíça pela tradução para o alemão de Crianças na escuridão (FTD Educação). E esse reconhecimento, como é de se esperar, não vem ao acaso. Braz se dedica à sua literatura com afinco, o que podemos comprovar em Na cor da pele (José Olympio), um trabalho profundo e que trata o leitor mais jovem com muito respeito.
Em Na cor da pele somos convidados para a intimidade de um adolescente de dezesseis anos que está lidando com dilemas que vem lhe tirando do lugar e o fazendo buscar por respostas, mesmo que essas sejam apenas internas. Por meio de uma narrativa em primeira pessoa, temos acesso às suas inquietudes, e conforme vamos avançando na novela, descobrimos o que ocasiona tanto sofrimento: a percepção de si enquanto sujeito negro.
Perceber-se negro não é algo fácil. Não à toa, esse é um tema que vez ou outra dá as caras na literatura. Às vezes, o que motiva esse sentimento de espanto sobre si é o desconhecimento, a desinformação. Algo muito comum no Brasil, onde a miscigenação é muito presente e o embranquecimento do seu povo fora por muito tempo estimulado. Além, claro, do projeto que é fazer com que nós não tenhamos consciência de quem somos, o que colabora para que certas dinâmicas de poder existam com menos resistência. Outras vezes, o que motiva essa “descoberta” é a compreensão da dimensão do que é ser um corpo não branco no mundo. Entender que as subjetividades, por mais particulares que sejam, também são compartilhadas. O que faz com que passemos a identificar algumas manifestações da sociedade e o porquê de muitas questões que nos circundam. Se para um adulto ser confrontado com tais reflexões já não é algo simples de se lidar, para alguém que está em formação – e mergulhado em dilemas –, o buraco é bem mais embaixo. Braz consegue reproduzir tal desafio com muita precisão.
O personagem central de Na cor da pele sabe-se negro, mas ao mesmo tempo, sente-se confuso, se não, perdido. “Por que as pessoas tinham tanto medo de dizer ou pelo menos constatar que eu era negro?”, se questiona. O motivo para nós, leitores, é óbvio, a sua pele clara. Mesmo com toda afirmação advinda de sua família paterna, toda pressão exterior tem seu efeito. Sobretudo por estar inserido num ambiente que só não é completamente embranquecido porque ele também lá está. Contudo, como o próprio infere, sua cor passa a ser invisível a ponto dele mesmo esquecê-la. E como se isso não fosse o bastante, sua mãe mesmo o deixa em dúvidas: “você não é negro, filho. Moreninho, você é moreninho. Moreninho claro.” Argumento tacanho, mas que tanta gente já ouviu. Como não se ver sem rumo?
Júlio Emílio Braz é feliz ao fazer de sua novela uma narrativa onde os conflitos se dão no interior de seu jovem personagem. Hábil, nos entrega uma trama psicológica em que acerta a mão ao construí-la de maneira tão tátil e relacionável à juventude. Não é porque seus problemas talvez não sejam tão complexos como os de um adulto que eles deixam de ser difíceis de enfrentar e até mesmo de ser doloridos. E de novo: se uma pessoa mais madura sente o peso ao lidar com toda a negociação que possa vir a ter a respeito de sua identidade racial, como acreditar que para uma adolescente isso será mais brando? Braz sabe disso. Não à toa, o personagem central de sua novela é tão esférico. E a maneira como ele é construído faz com que seja impraticável não lembrar do protagonista – também sem nome – de O homem invisível (José Olympio), de Ralph Ellison. Até mesmo por conta da pista, mesmo que inconsciente, que Braz nos dá ao escolher como epígrafe de sua novela uma citação deste autor. E como nos parece haver muitas semelhanças no modo como os dois personagem pensam o mundo ao seu redor e a si mesmos, ligar esses pontos se faz inevitável. É o que vemos em trechos como “pareço ter vivido duas vidas todo esse tempo. Uma bem visível, presa fácil de todo um confortável itinerário de felicidades palpáveis e sucesso irresistível, e uma outra inteiramente subterrânea, acumuladora de tristes recordações esquecidas, imagens dolorosas imediatamente abandonadas, de coisas bem ruins mas inteiramente invisíveis”, que poderia ter saído da boca de qualquer um desses dois. O que, de certo modo, só enriquece a obra.
Na cor da pele é uma novela filosófica, trazendo reflexões bem fanonianas, e que justo por esse caráter intrincado escondido sob o véu de uma falsa simplicidade, alcança sua profundidade. Júlio Emílio Braz é certeiro ao propor uma discussão delicada ao leitor mais jovem e não fazê-lo de modo que pareça duvidar de sua capacidade intelectual. E se pensarmos que a problemática que ele traz em seu trabalho é um tópico tão atual e envolto de paixões, é de se admirar que nos anos 2000 ele já estivesse nos convidando a ter essa conversa – a dedicatória do livro é por si só emblemática, pois o autor nomeia cinquenta e três maneiras com as quais pessoas negras de pele clara são comumente chamadas Brasil afora. E a importância desse debate, especialmente por ter o foco em um público mais novo, é muito bem sintetizada pelo personagem central do livro: “a visibilidade de um homem costuma começar a partir de seu próprio olhar e é ali que ela também deixa de existir”.