A alegoria de Nella Larsen em “Areia movediça”

“Eu encaro o feminismo negro como um projeto variado com dimensões teóricas, políticas, ativistas, intelectuais, eróticas, éticas e criativas; o feminismo negro é múltiplo, em constante mudança e desdobramento. Falar sobre ele no singular é sempre reduzir sua complexidade, negligenciar seus debates internos e suas abordagens ricas e variadas às questões da personalidade das mulheres negras.” — Jennifer C. Nash, Black Feminism Reimagined: After Intersectionality.

Antes de iniciar o texto propriamente dito, considero importante pontuar que, embora analise alguns aspectos relacionados à raça e ao feminismo negro em Areia movediça a seguir, inspirando-me nas palavras de Jennifer C. Nash, meu foco será explorar as questões de sexualidade e identidade de gênero presentes no romance. Assim, o que apresento aqui não é uma simples resenha, mas um estudo mais aprofundado — ou uma tentativa de compreender — o contexto histórico da obra, sua relação com a história do movimento LGBTQIAPN+, bem como as escolhas sociais e morais feitas pela protagonista e, por extensão, por Nella Larsen.

Nella Larsen publicou apenas dois romances em sua vida: Areia movediça (1928) e Identidade (1929). Embora tenham recebido certa atenção da crítica na época de seus lançamentos, ambos foram fracassos comerciais e caíram no esquecimento por décadas, em parte devido a um evento irônico: Larsen foi acusada de plágio e abandonou a carreira literária. Durante a segunda onda feminista, nos anos 1960 e 1970, seus romances foram redescobertos, relançados e passaram a ser amplamente estudados, especialmente por feministas negras, que reconheceram sua importância como um marco na literatura negra norte-americana.

“O Renascimento do Harlem era com certeza tão gay quanto era negro.” — Henry Louis Gates

Em Corpos que importam (1993), Judith Butler dedica um capítulo inteiro a Identidade, analisando a obra não apenas sob o prisma racial, mas principalmente por meio de uma lente queer. Apesar de o tema não ser diretamente abordado no romance, leitores atentos conseguem identificar subtextos sáficos na relação entre Clare e Irene. Em Areia Movediça (editora Ímã Editorial), os debates sobre sexualidade exigem ainda mais atenção às entrelinhas, mas, assim como a questão racial, dialogam profundamente com a própria vida de Nella Larsen.

Publicado no auge do Renascimento do Harlem, Areia movediça é uma narrativa híbrida: parte sátira social, parte estudo de personagem. A história acompanha Helga Crane, uma jovem negra de pele clara, filha de uma mãe branca europeia e um pai negro ausente — traços autobiográficos de Larsen. Helga sente intensamente as opressões interseccionais de ser negra, pobre, filha de imigrantes e sexualmente marginalizada, mesmo dentro de sua própria comunidade. A obra antecipa debates sobre interseccionalidade décadas antes do termo ser cunhado por Kimberlé Crenshaw, em 1989.

Além de tratar questões como racismo internalizado, colorismo e religião, Areia movediça também dialoga com os estudos sobre identidade de gênero e sexualidade que emergiram nos anos 1980. Embora não haja informações definitivas sobre a sexualidade de Larsen, ela é amplamente reconhecida como um “ícone queer” do Renascimento do Harlem, e seus romances são frequentemente citados como pilares do subgênero “Lesbian Fiction”. Assim, ler suas obras apenas através de uma lente feminista e racial, como alerta Jennifer C. Nash, significa ignorar boa parte da riqueza e profundidade de sua escrita. É essencial abordar Areia movediça com olhos atentos aos subtextos lésbicos que permeiam a narrativa.

Sexualidade marginal e o não lugar

Helga Crane é apresentada inicialmente como uma fashionista: ela gosta de se vestir bem, aprecia objetos de luxo, móveis elegantes e livros. Esse gosto pela estética material não é coincidência; é um elemento que ajuda a construir sua identidade em um contexto de exclusão. No início do romance, ela abandona um emprego em Naxos, uma escola conservadora para jovens negras no Sul dos Estados Unidos, e rompe o noivado com James Vayle, seu parceiro de longa data. Essa decisão marca a primeira de muitas tentativas de Helga de escapar do que chamarei de “heterossexualidade compulsória”.

Helga sente repulsa pelo papel que desempenha no sistema educacional de Naxos, que perpetua a subserviência racial, e decide partir para Chicago, onde espera viver com seu tio branco. No entanto, ao chegar, descobre que ele se casou com uma mulher racista que não a aceita. Sem opções, Helga enfrenta dificuldades financeiras e encontra emprego como assistente de Hayes-Rore, uma ativista negra que a leva ao Harlem, um centro vibrante de cultura e resistência.

No Harlem, Helga parece, inicialmente, encontrar um lugar ao qual pertence. Ela se insere na cena boêmia e intelectual do Renascimento do Harlem, convivendo com artistas e ativistas, muitos dos quais hoje seriam identificados como parte da comunidade LGBTQIAPN+. Ainda assim, Helga luta contra seu senso de deslocamento. Em um momento-chave do romance, ela sente repulsa de como seu corpo reage ao jazz, um gênero musical profundamente associado à negritude. Esse conflito entre orgulho e vergonha reflete suas tensões internas em relação à raça e à sexualidade.

A exotização da mulher negra

Quando Helga viaja para a Dinamarca, buscando aceitação entre seus parentes brancos, ela experimenta outro tipo de exclusão. Lá, é tratada como um objeto exótico e hipersexualizado, particularmente por Axel Olsen, um pintor que insiste em retratá-la nua. Larsen cria paralelos com a história de Saartjie Baartman, simbolizando a exploração racial e sexual da mulher negra. Helga rejeita Olsen e retorna aos Estados Unidos, mas sua busca por pertencimento continua a ser frustrada.

No final do romance, Helga passa por uma conversão religiosa durante uma noite de delírio emocional em uma igreja, levando-a a se casar com o pastor Pleasant Green. Essa decisão marca sua rendição à heteronormatividade e à repressão sexual. A narrativa sugere, com ironia trágica, que Helga, uma personagem que ousou desafiar convenções, é punida por sua resistência.

Conclusão

Areia movediça é uma obra devastadora em sua complexidade, abordando os dilemas da raça, da sexualidade e do não-lugar com uma profundidade que ainda ressoa. Nella Larsen constrói uma protagonista cujas lutas antecipam debates que só seriam formalizados décadas mais tarde, consolidando sua obra como um marco literário atemporal.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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