Nós Matamos o Cão Tinhoso- Luís Bernardo Honwana

Este é um livro de contos do autor moçambicano Luís Bernardo Honwana. Publicado pela primeira vez em 1964 com sete contos: “Nós Matamos o Cão Tinhoso”, “Inventário de Imóveis e Jacentes”, “Dina”, “A Velhota”, “Papá, Cobra e Eu”, “As Mãos dos Pretos” e “Nhinguitimo”. Esta edição da editora Kapulana, lançada em 2017 no Brasil, depois de 37 anos desde a primeira publicação, traz um conto inédito: “Rosita, até morrer”. Esta edição também conta com um posfácio de Vima Lia de R. Martin, professora de Letras da USP.  

O conto que dá título ao livro é de uma potência muito grande. Narrado em primeira pessoa por um garoto chamado Ginho, que nos apresenta um cachorro chamado por todos de Cão Tinhoso, que estava muito doente e por isso causava nojo e desconforto nas pessoas, apesar de não ter ânimo nem para correr atrás das galinhas: “As galinhas nem fugiam, porque ele não se metia com elas” (p.11) O cão costumava ficar nas redondezas da escola em que Ginho estudava e inspirava histórias que justificavam seus machucados. “O Cão Tinhoso tinha a pele velha, cheia de pelos brancos, cicatrizes e muitas feridas, e em muitos sítios não tinha pelos nenhuns, nem brancos nem pretos e a pele era preta e cheia de rugas como a pele de um gala-gala” (p.14-15). A única pessoa que gostava do cão a ponto de querê-lo perto e dividir seu lanche com ele era uma menina chamada Isaura.
Um dia mandam o veterinário matar o cão e ele passa essa responsabilidade para as mãos de um grupo de garotos de gosta de brincar de tiros. Ginho faz parte desse grupo, porém não gosta nada dessa ideia de matar o Cão Tinhoso, mas não pode fazer muita coisa para impedir, além de que também não queria ser mal visto pelos garotos de sua turma. São 12 garotos contra um cão e a descrição da morte faz pensar no quanto o ser humano pode ser cruel e despropositado em suas ações.

 “— Meu filho, tem de haver esperança! Quando um dia acaba e sabemos que amanhã será tudo igualzinho, temos de ir arranjar forças para continuar a sorrir e continuar a dizer ‘isso não tem importância'” (Do conto “Papá, Cobra e eu”, p.103). 

No conto “As mãos dos pretos” também é narrado em primeira pessoa, nele, um garoto que ouve do professor “que as mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo” (p.107) e fica encucado com essa justificava, então resolve sair colhendo opiniões de diferentes pessoas sobre o assunto, até que sua mãe lhe dá a resposta mais linda que poderia ser dada.
Não por acaso estes dois contos referidos acima são os que mais gostei. Eles são dois dos quatro que são narrados por crianças e isso faz com que a narrativa ganhe um tom especial porque as crianças veem o mundo de uma forma inocente e ingênua.
O conto inédito em livro “Rosita, até morrer”, apresenta uma escrita totalmente diferente dos demais porque com muito sentimento vamos lendo a carta que Rosita escreve para seu ex-namorado que a abandonou grávida e o que é mais tocante é que ela não teve oportunidade de estudar muito, então a carta está escrita cheia de “erros” e discordâncias gramaticais, mas apesar disso, passa a mensagem que ela quer transmitir. É muito triste a história dela.
O livro foi publicado em 1964, em um contexto histórico no qual Moçambique passava por uma guerra pela independência de Portugal, daí pode-se surgir algumas possíveis interpretações dos contos que vão para o lado da crítica política e social, como também da distinção de classe e do racismo.
Tudo nesta edição está impecável, desde a capa às notas de rodapé que podem ajudar o leitor brasileiro, pouco familiarizado com o português de Moçambique, a entender algumas palavras e expressões.
Recomendo fortemente a leitura, principalmente para quem gosta de narrativas feitas por crianças e de contos profundamente tocantes.
O livro pode ser adquirido pelo site da Editora Kapulana.
*Exemplar cedido pela Oasys Cultural.

7 respostas

  1. Geeeente nunca tinha ouvido falar desse livro. A capa e o titulo me chamaram muito a atenção! Adorei essa resenha e fiquei com muita vontade de ler, quero muito! Adorei a dica!

  2. Olha, não sou fã de contos. Mas o que mais me incomodaria seria mesmo o português de Moçambique, não consigo ler livros com português de outro lugar, fico desorientada. Sei que você falou das notas de rodapé, mas não é algo que funcione pra mim, isso de ter que parar pra ler uma explicação atrapalha ainda mais o meu envolvimento com o enredo, que no caso de textos curtos já é bem complicado. Mas anotei a dica, conheço pessoas que provavelmente vão curtir bastante, narrativas feitas por crianças são sempre incríveis.

  3. Oi Maria, sua linda tudo bem?
    Eu nunca li nenhum livro com o português de Moçambique, não sei se é difícil de entender. Já li um com o português de Portugal e foi super fácil. Acho que gostaria muito por trazer um pouco da sociedade deles que não conheço através dessas críticas. Mesmo não lendo contos, vou colocar na lista. Sua resenha ficou ótima!!!
    beijinhos.
    cila.
    http://cantinhoparaleitura.blogspot.com/

  4. Olá!
    Gostei de saber que o livro tem todo um contexto histórico que o envolve, sem dúvida, fiquei interessada. É a primeira resenha que eu vejo dele e já deixei anotada aqui a sua dica. Espero poder conferir em breve.

  5. Quanto ao conto "Nós matamos um cão tinhoso", você se ateve apenas à dicção do enredo. A contradicção, ou seja, o que se lê nas entrelinhas, trata do fim da Colonização Portuguesa em Moçambique. Cada um dos personagens retrata uma das camadas sociais envolvidas em tal processo: O Diretor da escola representa o movimento de guerrilha, a Professora tirana o sistema educacional que tolhia os anseios de mudança, o veterinário a elite instruída mestiça que desejava a revolução, mas tinha medo de conflagá-la, os meninos-alunos, a juventude a quem cabia o dever de acabar com o velho colonialismo, representado pelo cão tinhoso. Há ainda a menina Isaura, retratada como "diferente", ou seja a parcela da população ignorante que apoiava o colonialismo, apesar do mesmo ser a causa de seu atraso. Ao final do conto, quando o cão é abatido a tiros pelos meninos, o autor expressa a ideia que a vitória da revolução só se dará pelas armas, empunhadas pela juventude que foi educada pelos colonizadores, apenas a violência é capaz de acabar com um regime que, embora decrépito como o cão tinhoso, ainda despertava a simpatia e o medo para alguns extratos da sociedade moçambicana. Não é um conto "bonitinho" por que é narrado por uma criança. A escolha do narrador é proposital, assim como a linguagem coloquial empregada na escrita, como uma forma de aproximar, convidar o leitor a fazer parte daquele ato revolucionário. Visto sob esta ótica, não devemos ter pena do cão e sim admirar a coragem das crianças em cumprirem a missão de matar o cão tinhoso.
    E.T.: Recado para a JU: atenha-se a ler Harry Potter…

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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