O cinema dos melhores e mais brancos


 Nessa apresentação no mínimo insípida dos prêmios anuais da Academia, o Oscar, pode-se dizer que apenas uma piada merece algum destaque, logo a primeira, o que me leva a crer que algum produtor deu puxão de orelha no Neil Patrick Harris, forçando o resto dos monólogos a se renderem ao típico tapinha nas costas dos grandes produtores, sorrisos falsos e risadas forçadas. A piada dizia que o Oscar premiaria “os melhores e mais brancos…quero dizer mais brilhantes”. E essa polêmica cercou a premiação desse ano desde o momento do anúncio dos candidatos. O que mais chocou os jornalistas e comentaristas de internet não foi a falta de candidatos negros, de etnias não-brancas ou, como eles tanto gostam de dizer, “minorias” (que quando somadas entre si se tornam a maioria, mas esse não é bem o tema do texto), foi o fato de que esse ano demonstrou um regresso, visto que ano passado vários prêmios foram para os envolvidos em 12 Anos de Escravidão. Mas até que ponto isso faz sentido? Até que ponto a culpa é puramente da Academia?
 Seria inocência dizer que não há racismo na Academia. Como eles próprios colocaram, existe diversidade entre os membros da Academia, mas todos nós sabemos que isso quer dizer que eles dedicam 10 ou 15 por cento das vagas para negros, mulheres, hispânicos (ou, como os americanos gostam de se referir a qualquer outro país da América que não seja o Canadá ou os Estados Unidos, “latinos”), asiáticos, quem sabe um homossexual fora do armário, entre outros desse grupo enorme definido como minoria, mas que na verdade são todos aqueles que não são homens brancos heterossexuais. Tendo dito isso, acredito que o real problema dessa questão é outro. Não inocentando a Academia de ignorar produções não-brancas, existem questões mais complexas enraizadas na indústria do cinema que impedem esse problema de ser corrigido.

Comecemos pelo básico. Quantos diretores e roteiristas negros você conhece? Se você for um cinéfilo de longa data, pode ter conseguido tirar da memória uns cinco nomes. Steve McQueen, afinal foi ele o responsável pelo tão diversificado Oscar que foi o de 2014; se você está prestando atenção em toda essa polêmica, então ouviu falar de Ava DuVernay, diretora de Selma, o filme que não recebeu atenção alguma da Academia e levantou todos esses protestos; Spike Lee, que dedicou os primeiros anos de sua carreira à questão racial, mas hoje…, não sei onde ele está hoje, fez um remake de Oldboy ano passado, então é isso; se você for fã dos Blaxploitations da década de 1960 e 1970, conhece Gordon Parks, diretor dos filmes do Shaft, o investigador durão do Harlem; Lee Daniels recebeu alguma atenção após ter dirigido a adaptação de Preciosa; e se você for amante do cinema de verdade, daqueles que cavam fundo atrás de joias perdidas, deve ter ouvido falar de Charles Burnett e seu Killer of Sheep (Matador de Ovelha), de 1978. Seis nomes, uau, mais do que eu esperava. Eu mesmo, já aviso, não vi todos esses filmes que eu citei. Esses nomes foram resultados de uma longa pesquisa que eu fiz quando decidi me meter nesse tema. Foquei nos diretores americanos por questão de brevidade, mas o cinema africano também é de grande riqueza ignorada. O que eu quis dizer é que, na história do cinema, existem negros, mas eles são raros e difíceis de achar. Tenho mais o que fazer, então não vou perguntar quantos diretores e roteiristas brancos você conhece, a lista não terminaria nunca.

O que isso quer dizer? A resposta é mais simples do que parece. Para que um filme seja feito, é necessário, antes de tudo, dinheiro, financiamento. Para isso servem os produtores. Só que produtores querem retorno. Imaginem, financiar milhões para que façam um filme, recebendo de bilheteria apenas algumas centenas de milhares. Hollywood não fica sem lucro. Agora voltem e vejam os filmes “negros” mais falados e premiados nos últimos anos, o que eles têm em comum? História. São baseados em momentos históricos dos Estados Unidos. Martin Luther King, Solomon Northup, Malcolm X, Muhammad Ali, Ray Charles, gente que não poderia ser interpretada por brancos e são de interesse geral. Essa é a situação do ator, diretor, roteirista negro em Hollywood (e entendam que peguei o “negro” apenas para fins de exemplo, todas as outras “minorias” citadas anteriormente se encaixam aqui, mas para fazer jus a cada uma delas uma postagem de blog não bastaria, precisaria de toda uma enciclopédia do cinema). Ele pode interpretar ele mesmo em momentos históricos de interesse geral.

Vejam os outros indicados. Boyhood, Birdman, Whiplash, existe algo nesses exemplos que impeçam os personagens desses filmes de serem menos brancos? Não. Absolutamente nada impede a história de Boyhood de ser sobre uma família não-branca. Essa é a resposta que vem na cabeça de um ser humano decente. A resposta dos produtores de Hollywood? O uso de atores negros nesse filme transformaria o produto em um produto de nicho, diminuiria o público-alvo de “geral” para “negro”. Notem que eu não impliquei nessa mudança de elenco uma mudança de enredo. A história poderia ser a mesma, nada impediria. No entanto nossa cultura ainda acredita que o negro, ou qualquer outro não-branco, não possa ter uma vida normal, banal. Um filme negro precisaria levantar alguma bandeira social ou panfletária, logo diminuindo o público, o que não é verdade. Existem pouquíssimos filmes envolvendo personagens negros que tenham uma história banal porque os produtores de Hollywood não acreditam que isso seja plausível. Isso é apenas uma hipótese. O leitor pode resolver por si se isso faz ou não algum sentido. É a única resposta que eu vejo. É um fato indiscutível, no entanto, que a única experiência humana considerada universal é a do homem branco heterossexual de classe média alta.

Isso não isenta a Academia de nada, mas levanta a questão “que outras opções eles tinham?” Além de Selma, que filme poderia ter concorrido ao Oscar de melhor filme. Quais outros atores não-brancos se destacaram esse ano? Diretores? Eu não tenho uma resposta para essa pergunta porque, mesmo não tendo visto todos os filmes lançados esse ano, não acho que haja uma resposta. E esse ano vai ser a mesma coisa. É o ano de aniversário da morte de Malcolm X, então talvez vejamos um novo filme sobre sua vida. A história americana é cheia de revoluções raciais interessantes de fazer um filme sobre, pode ser que algo no estilo saia. Mas não podemos esperar um filme comum com protagonista negro. Isso seria um absurdo. Enquanto a indústria pensar dessa forma, contentem-se com um Oscar premiando apenas os melhores e mais brancos.

5 respostas

  1. Eu sinceramente acho que o preconceito começa quando separam-se as raças, criam-se cotas. Ora, se todos são iguais, porque haver cotas?
    Seria como colocar cotas para pessoas de cabelos escuros, para que tivessem os mesmos direitos que os loiros. Para mim não faz sentido.
    Claro que existe preconceito e acho uma falta de humanidade das pessoas. Cresci rodeada de amigos negros que adoro, nunca vi nenhuma diferença, a não ser, claro, a enorme vantagem que os negros levam sobre os brancos em várias situações.
    Me choca cada vez que ouço alguém discriminar qualquer etnia diferente da que se chama "normal". Quem é normal? Não vamos todos ser comidos por vermes depois que morrermos?
    Só não digo que vamos todos para o mesmo lugar porque, se existe justiça divina, os preconceituosos vão amargar muito antes de alcançarem o "paraíso".
    Beijinhos 🙂

    Meu Meio Devaneio

  2. Na teoria, sim, todos são iguais, mas na prática é uma falácia, por isso a existência de cotas.
    Como assim "as enormes vantagens que os negros levam sobre os brancos em vários situações"? Só se for ser o primeiro alvo da polícia, ser descriminado…
    Acho que se você ler Americanah, da Chimamanda Ngozi Adichie, vai entender umpouco mais do que estou falando.

  3. O texto não pede por cotas cinematográficas, pelo contrário. Pede justamente para que exista igualdade racial e que filmes com "não-brancos" parem de ser considerados material de nicho exclusivo para "minorias". Abra os olhos um pouquinho, veja além dos seus amigos. Quantos atores negros você viu interpretando papéis não-históricos ou não-estereotipados? A ideia é mudar a situação, tornar normal a existência de outras etnias em filmes, não como jardineiros ou empregados, mas como protagonistas. Se para que isso comece seja necessário cotas, bom, que assim seja (foi e ainda é necessário para o ensino, pelo menos enquanto não houver igualdade de ensino entre escolas públicas e particulares). Alguma coisa tem que ser feita já que os números mostram justamente o contrário do que o típico discurso branco insiste em pregar sobre a suposta existência de igualdade. (Talvez seja importante eu citar que sou branco, só não sou cego.)

  4. Cara Soraya,

    O seu direito à expressão, aliás o de todos é sagrado, desde que a expressão não seja subterfúgio para encobrir palavras criminosas, o que não é o seu caso; repito: não é o seu caso. Pois bem. Você escreveu: "Cresci rodeada de amigos negros que adoro, nunca vi nenhuma diferença, a não ser, claro, a enorme vantagem que os negros levam sobre os brancos em várias situações."
    Reflita sobre a injustiça do seu pensamento. Todos temos telhado de vidro. Sou branco, e eu nunca vi os negros levarem "vantagem" em nada. Se ficasse só nisso, "levar vantagem", menos mal. Mas não. Sobre eles recaem há séculos todo o tipo de injustiça que você possa imaginar. Nos últimos anos, melhorou um pouco, bem pouco, historicamente quase nada, concretamente as cotas foram um avanço milimétrico. O Brasil é um país preconceituoso; as pessoas são preconceituosas; não se vê um negro em papel de destaque (vez por outra, aqui e ali, ou seja, raramente) em peças, filmes, novelas, teatros, empresas. Em elevadores, à noite, nas universidades, não existe vida fácil para os negros. A polícia… Bem ,a as Instituições parecem não perdoar os negros, que resistem e não vão recuar um centímetro sequer. E meu apoio terão. Sempre. Nunca fui político. Nunca fui, nem eu, e nem ninguém próximo a mim. Escrevo porque é bem capaz de me taxarem de "político" no mais desabonador dos sentidos que tal mister carrega. Mas a essência do seu comentário é assustadora, de tão injusta.
    Arsenio Meira Junior

  5. Essa semana mesmo meu irmão e eu estávamos conversando sobre o papel de pessoas negras nas novelas. É estranho pelo menos pra nós que temos uma família toda misturada e que vivemos em uma área da cidade onde se brincar a maioria das pessoas devem ser negras até, ver sempre a mesma coisa na tevê: negros como empregados domésticos, mordomos,motoristas. São trabalhos dignos sim, mas essa "realidade" que eles insistem em querer dizer que é realidade em toooooda santa novela, é simplesmente uma forçação de barra imensa, uma perduração de estereótipos desnecessários que precisa ser mudada. Concordo com cada frase do seu texto.

    Abraço
    Que nerdisse Alice!

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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