Segundo romance de Nara Vidal nos leva a um mundo claustrofóbico pautado pela violência, abandono materno e anseios suicidas
Alerta de gatilho: violência doméstica, estupro, misoginia, machismo, suicídio, racismo e gordofobia.
Não lembro exatamente a autoria, ou mesmo o lugar em que me deparei com a frase, mas certa vez li que o ser humano é inerentemente fascinado pela tragédia e pela destruição. O exemplo usado na ocasião foi o seguinte: sempre que passamos diante de algum acidente de carro não conseguimos nos segurar, e olhando lentamente, buscamos alguém banhado de sangue, ou até mesmo um corpo sem vida. É um paradoxo, já que não conseguimos virar o rosto mesmo sabendo que possivelmente iremos nos deparar com algo desagradável — ou até mesmo traumatizante.
É assim que a maioria dos leitores irá se sentir após as primeiras 10 ou 20 páginas de Eva, novo romance de Nara Vidal — publicado no Brasil pela editora Todavia —, pois logo no início da narrativa já percebemos estar diante de uma protagonista desagradável e de temas espinhosos como estupro, pedofilia, misoginia e relacionamentos abusivos. No entanto, graças à atmosfera claustrofóbica aliada à escrita opressiva, orgânica e estranhamente paradoxal (funcionando quase como uma extensão da realidade da protagonista), não nos resta outra opção a não ser continuar a espiar por entre as páginas mesmo sabendo que estamos prestes a mergulhar na mente doentia de uma personagem desagradável e de difícil conexão. Em determinado momento, aliás, a autora parece mesmo testar quão dispostos estamos a testemunhar, ou até mesmo nos vermos nos atos egoístas de Eva, já que a protagonista nos deixa ciente — através da narração em primeira pessoa — de quão autodestrutiva ela é. Mas em Eva não conseguimos escolher um lado ou fazer julgamentos, já que Nara Vidal escreve uma protagonista multidimensional e cheia de nuances, que lentamente nos convida a nos esgueirarmos em suas entrelinhas, assim nos permitindo testemunhar a origem de todos os seus problemas mentais, bem como as raízes de seu círculo vicioso de violência.
Eva é um romance curioso, uma vez que parece muito mais um longo e desagradável — porém paradoxalmente prazeroso — fluxo de consciência de uma mulher que ao mesmo tempo é vítima e causadora de vários tipos de violência — física, mental e sexual, etc. Eva é sim vítima dos homens desde sua adolescência — quando era metralhada por olhares e desejos proibidos, e mais adiante, na vida adulta, quando enfrenta relacionamentos e casamentos com homens igualmente nojentos e abusivos; mas, e principalmente, era vítima de uma espécie tripla de maternidade apodrecida: a de sua mãe recém falecida, uma figura igualmente desprezível que com certeza possuiu sua parcela de dor e culpa na propagação de violência —, de sua avó, e a sua própria, já que após vários abortos clandestinos — narrados de forma gráfica —, ela infelizmente dá à luz ao seu filho e precisa lidar com o desgosto imediato de ter se tornado mãe.
Violento e sem diálogos, o romance tem como ponto de partida uma espécie de prólogo em que nos é apresentado de forma sucinta a origem e o fatídico desfecho de Eva (a personagem bíblica), e na sequência, somos levados à vida adulta da protagonista, que com 50 anos e divorciada, vive em um apartamento cedido pelo ex-marido e sobrevive graças ao dinheiro deixado à sua porta pelo filho já adulto. Ali ela enfrenta visões, fantasmas, frequentes pensamentos suicidas e diversos problemas mentais, uma vez que está presa em um túnel obscuro e claustrofóbico em que repensa e nos mostra flashes de sua vida desde a infância. Nessas espécies de monólogos interiores ficamos sabendo a origem do seu ocasional racismo e de seu relacionamento conturbado com a mãe e a avó, ambas manipuladoras —, passando por sua vida como uma jovem mulher em seus vinte e poucos anos — repleta de relacionamentos vazios e puramente sexuais em outros países com homens e mulheres que ela odeia, até chegarmos no presente, onde ela vive presa em seu apartamento, passando os dias ao lado da janela.
De pouco a pouco, contudo, a escuridão e a confusão inicial começa a se dissipar e finalmente passamos a entender a origem de seu comportamento sexual e maternal, ambos autodestrutivos: a carga religiosa e negativa de seu nome fez com que Eva sofresse desde o nascimento, uma vez que aos olhos da mãe — que nunca a perdoou pelo nome escolhido pelo pai —, o apetite sexual da filha está diretamente ligado à pecadora personagem bíblica. Como consequência, ela cresceu acostumada com a violência, chegando inclusive a internalizar um certo grau de misoginia graças aos vários abusos sofridos por parte da mãe, que a espancava — muitas vezes sem motivo, ou por causa dos olhares que ela recebia na rua na pré-adolescência. É sintomático, aliás, o fato de que um homem (seu pai, no caso) seja o responsável por toda a violência sofrida por Eva desde seu nascimento.
As passagens envolvendo o desabrochar sexual de Eva antes mesmo dos sete anos de idade causam um incômodo constante, principalmente através de alguns anseios protosexuais em que ela parece buscar pela atenção dos homens nas ruas. Fica a cargo do leitor, entretanto, decidir se esses momentos são apenas resultantes da falta de afeto dentro de sua família ou um ato de rebeldia contra a mãe que diz várias vezes que ela precisa fechar as pernas. De qualquer forma, muitas vezes enfrentamos um dilema ao tentar decifrar a origem deste comportamento, já que às vezes a protagonista dá a entender que suas decisões relacionadas ao sexo não são exatamente intrínsecas à sua personalidade, mas sim uma tentativa de atingir — ou mesmo ultrapassar — as expectativas negativas relacionadas à religiosidade de seu nome.
Em um determinado momento da narrativa ela começa a perceber um padrão na floricultura do primeiro andar de seu prédio: no mesmo dia em todos os meses, Ana, uma mulher na faixa dos 35 anos compra cravos brancos. Curiosa, e sabendo da carga mórbida que a flor carrega, Eva decide segui-la até o cemitério da cidade, que sem supresas, era o seu destino, onde visitava o túmulo da mãe. A partir daí o romance ganha novas camadas de obsessão, anseios sexuais e violência psicológica, uma vez que agora, de acordo com a mente de Eva, ambas possuem uma ligação: suas mães já estão mortas. Se quisermos ir mais a fundo, não custa nada lembrar das origens do nome Ana, que na tradição romana era uma deusa que controlava a passagem do tempo — o que é muito perspicaz por parte da autora, já que mesmo sem perceber, Ana passa a alterar e controlar a passagem dos dias na vida de Eva.
Não obstante, e lentamente, Eva decide invadir a casa de Ana enquanto ela trabalha, repetindo a ação diariamente por vários meses, e assim descobrindo — através de cartas — que ambas possuem uma relação autodestrutiva com o sexo e com as respectivas mães, além de perceber (ou deliberadamente decidir) que Ana esta prestes a perder sua beleza corporal, seu charme, sua jovialidade. Ou seja, ela está prestes a se tornar a Eva de sua própria história. De forma sintomática, é construída uma tensão sexual onipresente e unilateral a partir do momento em que a nova personagem é inserida na história, principalmente através das roupas de cama encontradas por Eva na casa da mulher, que estão sempre cheirando a sexo recém praticado — e esse detalhe faz com que sintamos pena da protagonista, que ela passa a sentir ainda mais a falta do toque alheio, visto que o flerte, os olhares e as suas próprias noitadas de sexo vazio, existencialista e depressivo estão há muito tempo enterradas no passado. E como resultado, ela decide continuar — ainda que talvez de forma inconsciente — mais um circulo vicioso de violência mental e sexual que pode ter consequências trágicas para ambas.
Para finalizar, Eva é um romance que possui uma escrita desconcertante e deve ser lido do mesmo modo que tiramos um esparadrapo de uma ferida: de uma vez, sem hesitação e sem pausas, pois assim iremos sofrer o mínimo possível naquele mundo opressivo e cruel, já que permanecer por muito tempo na mente daquela mulher é algo que eu definitivamente não recomendo — uma vez que no caminho nos depararemos com emoções contraditórias em nosso próprio corpo e atravessaremos essa narrativa sentindo uma mistura de medo, vergonha, pavor, culpa, ou até mesmo satisfação na escrita de Nara Vidal.