Giallo (amarelo, em italiano) foi um gênero cinematográfico popular na Itália durante as décadas de 60 e 70. Os Giallos uniam elementos de terror psicológico, suspense e sobrenatural para contar histórias que geralmente envolviam assassinatos de mulheres cometidos por homens com sérios distúrbios mentais. Na década de 60 o termo “Giallo” passou a ser sinônimo de filmes de diretores como Mario Bava, Lucio Fulci e Dario Argento. Filmes do gênero Giallo são conhecidos mundialmente pelo uso de trilhas sonoras marcantes e atmosféricas, pelos comentários sociais sobre o racismo, a misoginia e o fascismo italiano. Na literatura os Giallos foram populares nas décadas de 20 e 30 e consistiam em traduções para o italiano de romances Pulp, Hardboilled e Noir de autores como Raymond Chandler, Dashiell Hammett, Agatha Christie e James M. Cain. As edições destes livros eram baratas e possuíam — adivinhem só — capas amarelas!
A obra
O crime no edifício Giallo foi publicado em 2022 pela editora Rua do Sabão, e é o nono livro de Luiz Biajoni. A obra vem acompanhada de uma trilha sonora que pode ser acessada através de QR Codes em lugares específicos da narrativa. Brilhantes e evocativas, as composições criadas por Perpetomobila, homenageiam os grandes compositores italianos do Giallo, como Pino Donaggio e Ennio Morricone.
Carlo Belmonte é um rico e renomado negociante de arte que se muda para o imponente Edifício Giallo em busca de uma reorganização pessoal e social após perder o companheiro, Joseph Von Unger, vítima da Covid-19. No edifício moram as pessoas mais ricas e conservadoras da cidade, entre elas, Dr. Edmundo, um famoso advogado; o vice-prefeito Frank Lacalle e sua esposa; um líder religioso chamado Jen Seller; um bispo chamado Eduardo Rodriguez; um casal de religiosos que cuidam de um filho com problemas mentais; Christian Pete, um recluso e renomado escritor; e a família Baxter, formada pelos protagonistas John Baxter, sua esposa Carol (Filha do Dr. Edmundo) e sua filha Gina. O dia a dia no local é pautado, pelo menos a princípio, pela discrição, pela educação, e por último, mas não menos importante, por noites extremamente silenciosas.
Como deve ter ficado perceptível, todos os moradores são brancos, ricos e levam uma vida monótona. Carlo, apesar de ser igualmente rico, é entendido por todos como uma figura estranha naquele local — a personificação do negro como “O outro”. O motivo, ao menos de acordo com o narrador, é o fato dele ser um homem negro, culto e gay. Obviamente, sua presença no edifício — aliada às festas extravagantes organizadas por ele (com a ajuda de Jim, seu namorado branco) — faz com que ele se torne uma figura odiada e invejada por quase todos os moradores do Giallo. Quando um morador é encontrado morto em sua cama com um punhal cravado no peito, todos seus vizinhos tornam-se suspeitos deste crime horrível. O que poderia ter motivado o crime? É o que Nanete, uma obstinada delegada jovem e negra vai precisar descobrir ao investigar o movimento e o passado de todos os moradores do prédio, inclusive de seu próprio namorado, o escritor Christian Pete.
Em termos de escolhas na criação da trama, já podemos perceber uma desconstrução dos papéis dentro do gênero Giallo, uma vez que Luiz Biajoni — autor de jovens clássicos nacionais como A comédia mundana e Elvis e Madona — abandona a misoginia que geralmente era o fio condutor das tramas para abordar o que a princípio parece ser um crime motivado por ciúmes e desejos sexuais. De modo acertado, Biajoni também traz a realidade brasileira para a narrativa, que tem início alguns meses após ápice da pandemia de Covid, e os personagens ainda estão se readaptando à rotina de poder sair novamente de suas casas, lutando contra a tensão, o tédio e o tesão acumulado. Alguns moradores estão com a libido à flor da pele, enfrentando novos desejos sexuais que podem desequilibrar a harmonia heteronormativa daquele edifício.
É interessante perceber que apesar de inserir detalhes que nos indicam que a ideologia “fascista tropical” dos moradores e de criar um verdadeiro Giallo nacional, Biajoni ainda mantêm algumas características originais dos clássicos italianos, como por exemplo, dar um nome em inglês para o protagonista, que aqui é batizado de John Baxter — decisão que pode causar um estranhamento no leitor, mas que nos remete diretamente a filmes de Dario Argento como “O gato de nove caudas” e “Quatro moscas sob o veludo cinza”, ambos de 1971; e “Prelúdio para matar”, de 1975, cujos protagonistas eram turistas (corpos estranhos em um ambiente hostil, como é o caso de Carlo aqui). Em termos de homenagem, aliás, fica claro que Biajoni não está interessado em referências sutis, visto que Carlo também é o nome do protagonista de “O gato de nove caudas”.
Como estamos diante de uma obra biajonesca, todas as nuances acerca do sexo e da sexualidade estão presentes. Após descobrir que Carlo é gay, John Baxter começa a ter sonhos eróticos recorrentes com o vizinho, detalhe que começa a tirar seu sono durante a noite — em um possível caso de homofobia internalizada misturada com o racismo. Ao levar o assunto ao Dr. Kerr, seu terapeuta, Baxter começa a perceber uma obsessão que também pode estar diretamente ligada à sua falta de exploração sexual, já que está preso pela segunda vez em um casamento heteronormativo. Em determinado momento Baxter se veste com um casaco de peles feminino e começa a desfilar por seu quarto — detalhe que nos remete diretamente a filmes como “Vestida para matar” de 1980 — que por sua vez já era uma homenagem do diretor Brian De Palma aos clássicos do Giallo —, ou até mesmo ao clássico “Psicose” dirigido por Alfred Hitchcock em 1960. Essas atitudes de Baxter podem funcionar ao mesmo tempo como possíveis dicas sobre sua personalidade, ou simplesmente atrapalhar o leitor — no melhor dos sentidos — a decifrar a identidade do assassino.
Em termos de suspeitos, suspense e divisão de atos, o livro é um sensacional exemplo do “whodunnit” ao nos proporcionar um grande número de personagens com motivações para cometer o crime. Além de Baxter, temos os líderes religiosos, que claro, são suspeitos imediatos. Reparem como Carlo é um anagrama de Carol. Esta, por sua vez, está enfrentando problemas relacionados aos vários remédios controlados dos quais é refém. Construindo a narrativa de forma não linear, Biajoni vai e volta no tempo enquanto nos conta detalhes passados da vida de cada um dos personagens principais, nos alimentando pontualmente com dicas que podem ajudar a revelar as motivações de cada um deles.
Com uma mão calibrada Luiz Biajoni cria uma simbiose entre Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues e Agatha Christie para examinar a hipocrisia da elite brasileira pós-pandemia neste atmosférico Giallo à brasileira repleto de comentários sociais relevantes, referências literárias e cinematográficas. O leitor com uma bagagem cinéfila e aficionado pelo gênero Giallo terá uma leitura muito mais rica e profunda, mas para o leitor comum, a obra funciona perfeitamente como um romance policial eletrizante que debate questões sociais, raciais e relacionadas à identidade de gênero — temas praticamente abandonados graças ao desgoverno que assolou o Brasil desde o surgimento do Bolsonarismo.