Como abordar a repressão feminina, machismo, ditadura, feminismo, poligamia, a virilidade masculina, ou sua falta, impotência sexual, infertilidade e infidelidade de forma fluída, tendo como plano de fundo a tensão política e uma ameaça inerente de uma ditadura?
Em seu primeiro livro, a escritora Ayọ̀bámi Adébáyọ̀ cria uma narrativa hábil, dando atenção impressionante a pequenos detalhes que se apresentam como partes de um quebra-cabeças repleto de rimas visuais, mesmo sem se tratar de uma obra audiovisual. Complexa e contando com vários personagens, Fique Comigo, traduzido por Marina Vargas, aborda em quatro partes, e por cerca de duas décadas, a trágica história de Yejide, uma jovem nigeriana dona de um salão de beleza que, devido a uma aparente infertilidade, vive em constante medo de ser “substituída” por uma segunda esposa mais nova capaz de dar um filho ao marido. Akin, o marido, é atencioso e apaixonado, mas acaba por sabotar sua vida com a mulher que ama ao construir toda a relação usando mentiras como alicerces. Ao sentir-se sem esperanças, resolve buscar ajuda ao seu irmão Dotun, um mulherengo nato e de moral duvidosa.
O cuidado com o detalhismo fica evidente em certos momentos, quando por exemplo, Yejide se sente incomodada por não conseguir remover uma mancha de café que teima em continuar em seu tapete, o que pode ser entendido como uma analogia referente a sua frustração relacionada com as recorrentes intromissões de seus sogros que insistem em fazer parte de sua vida pessoal, ou, então, ao ter sua condição de mulher constantemente diminuída por familiares, vizinhos e amigas devido a sua aparente infertilidade. Ainda podemos entender a mancha de café como a sombra da segunda esposa que pode estar prestes a fazer parte de sua vida. Se quisermos, porém, levar esse pensamento ainda mais adiante, podemos repensar a mancha de café como uma forma implícita de exemplificar o machismo que nunca é exterminado da sociedade. Isso fica claro na história se lembrarmos das inúmeras vezes que médicos a excluem de detalhes da sua própria gravidez ao pedirem para falar apenas com seu marido. O que não deixa de ser irônico, já que como sabemos, Akin é literalmente a última pessoa que deveria ser consultado a respeito da gravidez da esposa. Isso lembra mecânicos que preferem discutir problemas em automóveis com o marido.
Curiosamente, essa riqueza de detalhes é abandonada em relação a roupas, calçados, maquiagens e suas cores, exceto para falar de penteados, ou de um certo vestido rosa em um momento chave, essa ausência mais detalhada talvez possa causar certa dificuldade se o leitor tentar dar rostos e vozes aos personagens, tentar se conectar com suas dores e suas alegrias, participar da tragédia de cada um deles. Alguns momentos importantes perdem um pouco do impacto por essa falta de presença visual, ou de desenvolvimento, como foi o caso de Funmi, a segunda esposa de Akin.
Já a narrativa, que é feita de forma não linear, poderia ser considerada confusa, foi uma escolha acertada, sendo o ponto alto do livro. Os narradores trazem um suspense extra no começo de cada capítulo, uma vez que temos de nos familiarizar não somente com a linha do tempo escolhida pela autora como também com o personagem que está atuando como narrador naquele momento. Ao utilizar dois narradores, Ayọ̀bámi cria quase um efeito Rashomon contendo versões que nos causam incredibilidade, já que certas informações apresentadas por este ou aquele narrador podem ou não ser completamente verdadeiras, ou, em alguns casos, estar ignorando fatos importantíssimos para a trama apenas para serem revelados em momentos chaves. Achei, inclusive que o risco inerente que permeia a narrativa graças a tensão política no plano de fundo seria mais explorado nestes momentos chaves, e não somente durante a parte final da história.
Li Fique Comigo em apenas 3 dias. Não por pressa, mas sim porque me pareceu impossível ler algo tão trágico de forma displicente. A obra é construída de tal forma, que ficamos constantemente com aquele pressentimento de que algo terrível está sempre prestes a acontecer na página seguinte, pois vários momentos funcionam como premonições de acidentes e mesmo com frases que servem de premonições, somos constantemente surpreendidos, como por exemplo, quando determinado personagem aparece desacordado nos pés de uma escada, ou, quando alguém amanhece morto em sua cama. É difícil, nestes momentos não encarnar nosso interno Philip Marlowe e desenhar vários cenários possíveis sobre quem cometeu este ou aquele assassinato.
Fique Comigo é um romance que prende a atenção e não nos deixa abandonar a leitura. A habilidade de Ayọ̀bámi em criar uma história épica que, mesmo narrando os horrores de uma vida de luto sequencial causado por uma busca interminável pela maternidade, e que, repleta de tragédia ainda encontra espaço para um humor pontual, precisa ser evidenciada. Ao escrever sobre temas tão pesados, a autora nos permite receber pequenas cápsulas de humor escatológico apenas para nos dilacerar nas páginas seguintes. Para finalizar, espero que sua próxima obra seja publicada o mais rápido possível, pois precisamos de obras com tamanha complexidade e fora do lugar comum.