Toni Morrison possui o dom de iniciar suas histórias com os mais impactantes primeiros parágrafos. Foi exatamente assim com Jazz e Paraíso (meus encontros anteriores com a obra da autora). Da mesma forma, O olho mais azul (publicado pela Companhia das Letras, com tradução de Manoel Paulo Ferreira) começa de uma forma direta e assustadora que, correndo o risco de ser interpretada como spoiler acaba, na verdade, funcionando como um minúsculo anzol que nos faz, mesmo sabendo que irá doer, escolher furar nossas línguas para sermos puxados passivamente para dentro daquela história que estamos prestes a testemunhar. As obras da autora causam o mesmo efeito que vídeos de acidentes: sabemos que o que virá será traumatizante, mas não conseguimos virar o rosto.
Ao iniciar O olho mais azul Morrison estabelece um sentimento de proibido, de segredo, de fofoca, de modo que ao lermos que a protagonista de apenas 11 anos está prestes a dar à luz a um filho de seu próprio pai, temos certeza de que o que vem pela frente está longe de ser uma leitura simples.
A autora aborda temas pesados como estupro, abuso infantil, incesto, racismo internalizado, colorismo e miscigenação. O racismo estrutural aparece também de forma sutil nas citações de atrizes e atores brancos citados pelas personagens. Mostrando a dificuldade de pessoas negras se sentirem representadas no cinema, uma vez que atores negros só conseguiam trabalho como ladrões, escravizados ou empregados.
Shirley Temple e seus olhos azuis é citada mais de 3 vezes em menos de 30 páginas. Hedy Lamar, e Betty Grable, Claudette Colbert e Clark Gable também aparecem, assim como Jean Harlow. Ambos em flashbacks contados por Polly Breedlove, mãe de Pecola. O único ator negro citado é Bill “Bojangles” Robinson. É sintomático, portanto, que o único ator negro citado seja um dançarino conhecido por sua parceria de 4 filmes com Shirley Temple nos anos 30, onde servia exclusivamente como escada para o sucesso de uma garotinha branca. Vale lembrar que Robinson, mesmo sendo o ator negro mais bem pago no mundo durante duas décadas, faleceu sem nenhum dinheiro em 1949.
“Passava longas horas sentada diante do espelho, tentando descobrir o segredo da feitura, a feiura que a fazia ignorada ou desprezada na escola, tanto pelos professores quanto pelos colegas. Era a única pessoa da classe que sentava sozinha numa carteira dupla.” (p. 49)
Em entrevista, a autora disse que sua intenção era mostrar como o racismo consegue destruir a saúde mental do mais inocente ser humano, e usou como personagem principal Pecola, uma menina retinta extremamente feia, que mesmo na tenra idade de 11 anos não só já está exausta do racismo sofrido diariamente, como também é usada como bode expiatório por suas amigas para se sentirem mais bonitas e mais felizes, já que Pecola é membro de uma família pobre, possui um irmão que já fugiu de casa 24 vezes, um pai bêbado violento e uma mãe que demonstra mais amor aos filhos brancos de seus patrões do que aos seus próprios. Pecola é passiva e desenvolve um sério complexo de inferioridade em função dos constantes ataques sofridos por membros da comunidade, vizinhos e amigos de escola. Seu sonho é ter olhos azuis como o da Shirley Temple.
A história é narrada por Cláudia, uma menina negra de 9 anos com quem Pecola vai viver após um surto violento do pai em que ele queima a casa da família. Claudia, assim como Pecola, sofre com todos os tipos de problemas que envolvem não somente ser uma pré-adolescente, mas também ser uma menina negra em um país segregado, e como consequência é preterida por adultos e por garotos negros, que, devido ao racismo internalizado e o ódio constante que sentem por seus próprios corpos negros, são violentos com as meninas retintas, mas amáveis com as meninas brancas e negras de pele clara, já que a miscigenação era considerada status social naquele lugar.
O talento de Toni Morrison pode ser exemplificado pelo seu poder em construir uma passagem bem humorada relacionada ao pavor da primeira menstruação, e a reação de cada uma das três amigas. Duas coisas são reveladoras e tristes: primeiro que Pecola, mesmo sendo tão nova, já consegue diferenciar os olhares de assédio dos de desdém, dos de nojo, dos de objetificação por parte dos homens adultos; e segundo, que sua menstruação precoce pode ser entendida não como um “desabrochar”, mas sim como a perda de sua inocência, visto que ela é a primeira do grupo a “tornar-se mulher”. É doloroso, de fato, notar que um parágrafo que começa com humor acaba por nos deixar aflitos, uma vez que percebemos que o sangue de sua menstruação simboliza seu ser mulher e também sua dor, já que a autora deixa explícito na primeira linha do romance que a pobre menina vai engravidar do próprio pai em algum momento da história. É devastadora a variedade de traumas que um crime desses causa em uma criança.
Toni Morrison separa um bloco central para contar a história de Geraldine, uma mulher negra de pele clara que a narradora faz questão de chamar de “parda”. Notamos um certo desdém, ou uma inveja nas palavras dessa narradora, já que Geraldine é magra, rica, possui um marido e uma casa enorme e luxuosa. Morrison começa esse capítulo de modo fluído, exemplificando como esta mulher a princípio possui tudo que as outras mulheres sonham, apenas para mudar de pouco a pouco o foco, passando para a solidão sexual vivida por Geraldine e a incapacidade de seu marido lhe proporcionar prazer.
Termino esse texto analisando uma passagem que para muitos pode parecer sem importância, mas que conversa diretamente com a situação atual no Brasil. Trata-se de um dos momentos mais inteligentes já criados na literatura: ao narrar uma longa caminhada entre Claudia e sua irmã Frieda em busca de Pecola, que se encontra no trabalho da mãe, Morrison usa a mudança gradativa da arquitetura entre os bairros para mostrar o poder aquisitivo (e por conseguinte, a raça dos moradores que ali vivem). A passagem termina de modo tristíssimo, pois encontramos as três amigas displicentemente comentando umas com as outras como seria ótimo se crianças negras também fossem permitidas em um parque segregado lindíssimo dentro daquele bairro rico. Hoje, décadas após a publicação, O olho mais azul se mantém mais relevante do que nunca, pois podemos ver versões atualizadas deste momento aqui mesmo no Brasil, quando, em época de grandes eventos, presenciamos a desigualdade da segregação moderna de forma mais evidente através de fotos com crianças negras em situação de rua próximas de grandes estádios lotados com gente branca ostentando todo o luxo que a elas é constantemente negado.
Viva Toni Morrison!
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