Com uma escrita simples e direta, o autor Marcelo Moutinho cria 13 contos que possuem em comum o Rio de Janeiro e suas paisagens não tão conhecidas. As histórias contadas em Rua de Dentro (editora Record) não acontecem em grandes centros, famosos pontos turísticos, e não são mirabolantes ou carregadas no existencialismo. Cartões postais não serão encontrados nessa obra. Logo, somos apresentados a dramas bucólicos e maresmentos que acontecem longe do glamour. Literalmente, nas ruas de dentro, afastadas das grandes avenidas. Acredito que isso não seja necessariamente um defeito, pois ao centrar suas histórias em pessoas comuns, o autor cria uma proximidade entre personagem e leitor.
“… Mas o pássaro morreu antes que pudesse se transformar em sua maturidade multicolorida.” – Qiu Miaojin
É impossível ler os dois contos analisados a seguir e não lembrar do trecho acima, de Last Words from Montmartre, publicado pela escritora taiwanesa Qiu Miaojin em 1996, pois alguns contos são curtos demais, parecendo inacabados. O caminho mais curto é interpretar isso como ponto negativo, mas talvez seria mais perspicaz percorrer um caminho diferente, como se fosse uma triste analogia da vida de alguns dos personagens, como por exemplo, jovens negros que antes de desabrochar são assassinados sistematicamente pela polícia na favela que serve de plano de fundo no conto “Memória da chuva”; ou como a curta vida das mulheres trans no Brasil, que são expulsas de casa por pais transfóbicos, muitas vezes sendo assassinadas antes mesmo de se sentirem plenamente completas.
Embora o autor afirme que tenha conversado com duas mulheres trans durante a criação do conto, ainda trata-se de uma história com protagonismo trans contada através do ponto de vista de um homem, portanto, é impossível não problematizar quando ele escreve passagens no mínimo lamentáveis, como por exemplo “minha primeira vez foi ainda no corpo de homem” (p. 25), já que mesmo que a mulher trans ou travesti ainda não tenha começado a transição ou a terapia hormonal, seu corpo nunca “foi de homem”, ele apenas era lido como tal por uma sociedade viciada em binarismos. A narradora trans criada por um autor cis ainda escreve que “dá muito trabalho ser uma mulher com pau” (p. 17), ou que “apesar do desenho feminino, nossa força é de homem” (p. 24) (itálico meu). Acho muito perigosa essa ideia de relacionar o corpo trans com a força masculina.
Lembro que anos atrás, quando veio a público a notícia de que o ex jogador Romário estava se relacionado com a modelo trans, Thalita Zampirolli, um dos narradores de um canal esportivo achou que seria engraçado dizer que o “baixinho estava comendo uns negócio estranho (sic) atualmente”. Romário, por sua vez, ao ser perguntado sobre sua relação com a modelo capixaba, riu e desconversou dizendo “ela é gente boa, sangue bom, inclusive é minha camarada, mas eu gosto é de mulher”.
O mundo do futebol é historicamente preconceituoso e racista. No livro, alguns contos saltam aos olhos por abordar essa intercessão de classe, raça e sexualidade de modo pertinente, como por exemplo, “Oxê”, conto que se passa dentro do homofóbico mundo do futebol brasileiro, mais precisamente dentro da seleção brasileira, durante o catastrófico 7×1. Os protagonistas são Betão, zagueiro da seleção, e seu namorado, um segurança que trabalha no estádio. Sua relação como não poderia deixar de ser, está confinada às grossas paredes do armário, e é justamente por isso que o conto é incrivelmente relevante. Os grandes programas de mesa redonda adoram dizer que não existe racismo ou preconceito no futebol brasileiro, mas nós sabemos que não é bem assim. Eu mesmo, por exemplo, já vi apresentadores fazendo piadas infelizes com o jogador multicampeão Richarlyson em programas ao vivo. Richarlyson, vale ressaltar teve sua carreira destruída simplesmente pelo “boato” de que talvez fosse gay, chegando a abandonar a carreira para jogar vôlei em um time do interior de São Paulo. Chega a ser trágico que a sexualidade de um jogador pode acabar com sua carreira enquanto outros que são condenados por estupro continuam atuando em grandes clubes nacionais ou europeus.
O conto “Oxê” pode ser entendido como uma crítica a essa homofobia desenfreada nos estádios brasileiros. Em determinado momento, o segurança (que é formado em sociologia, mas precisou aceitar o emprego que pagasse os boletos) tenta manter o profissionalismo ao ouvir torcedores proferindo xingamentos direcionados ao seu namorado em campo.
Em última análise, Rua de Dentro ganha pontos por tratar-se de uma escrita sucinta e sem floreios, a leitura flui de forma agradável, tudo graças à uma uma singularidade bucólica, como no conto “Endless Love”, em que um taxista consegue ao mesmo tempo ser homofóbico e chorar ao ouvir Diana Ross. Dolorosas lembranças o arrebatam e ele não consegue segurar as lágrimas durante uma corrida, pois a voz da cantora o faz lembrar da esposa morta nos anos 80. Essa simplicidade traz um frescor até mesmo aos contos mais pálidos do livro, dando um charme quase acidental, mesmo aos contos que não funcionam.
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