O ódio que você semeia- Angie Thomas

Starr, uma jovem negra de 16 anos, é a personagem principal e narradora em primeira pessoa deste livro. Ela e sua família moram em um bairro do gueto, em Garden Heights, nos Estados Unidos. Desde os 10 anos, estuda em uma escola particular em outro bairro, a Williamson Prep, o que faz com que ela tenha que adotar comportamentos diferentes de acordo com o local em que está. Na escola, em que ela é uma das duas únicas pessoas negras, tem duas amigas brancas, Maya e Hailey. No bairro, tem dois amigos Kenya e Khalil e namora Chris, um garoto branco.

O livro com começa com Starr acompanhando Kenya em uma festa no bairro. Passado o momento inicial de desconforto por não conhecer ninguém, ela encontra Khalil, seu amigo de infância. Os dois estão conversando quando acontece uma briga com trocas de tiros, então Khalil tira Starr da festa no carro dele. Pouco tempo depois, são abordados por uma viatura policial porque o farol traseiro estava quebrado. Quando um negro é parado por um policial nos Estados Unidos, há algumas regras a serem seguidas: “Faça o que mandarem você fazer. Mantenha as mãos à vista. Não faça movimentos repentinos. Só fale quando falarem com você”. Starr sabia dessas regras, mas Khalil, aparentemente, não, e depois de ser revistado três vezes, acaba sendo morto pelo policial, mesmo que não representasse um perigo concreto. A principal motivação para ter sido morto, era o fato dele ser negro. Starr é a única testemunha ocular que sabe o que aconteceu de verdade, a partir de então, sua vida se transforma entre a necessidade de falar tudo que aconteceu e assim, buscar justiça pela morte de seu amigo, ou ficar calada.

“As despedidas doem mais quando a outra pessoa já partiu”. (p.61)

A posição em que Starr se encontra não é das mais fáceis. Não é a primeira vez que ela vê um amigo morrer diante de seus olhos, mas dessa vez há muitas coisas envolvidas: guerra às drogas, brigas de gangues por território, violência, vulnerabilidade social. Como seguir a vida normalmente sabendo que seu melhor amigo de infância, negro, foi assassinado por um policial branco, sem ter feito nada? O livro vai mostrar como Starr lida com isso e com outras questões, como relacionamento inter-racial, entre duas pessoas de classes diferentes. Ela ser negra, de uma família militante, principalmente o pai, e namorar um garoto branco, de uma família rica; os diferentes argumentos que as pessoas usam para justificar a morte de Khalil e o quanto a mídia faz com que aja uma racionalização dela e contribui para que aja uma subversão dos papeis, transformando o policial em vítima, quando na verdade ele é o assassino e nada justifica seu ato covarde; Ou aquela amiga que faz comentários racistas, mas não admite que é racista.

“Quando se vê o quanto uma pessoa está fragilizada, é o mesmo que vê-la nua, e não tem como olhar para ela do mesmo jeito”. (p.75)

O livro todo é permeado pela filosofia de Tupac em relação à Thug Life, vida bandida, e de como essa filosofia se aplica à realidade dos guetos, da importância de haver uma mudança no comportamento da sociedade para que as crianças não sejam afetadas, como por exemplo, “ter que escolher entre a luz e a comida” e não se vê na necessidade de conseguir dinheiro de uma forma mais “fácil”. Nem sempre entrar para o mundo das drogas é uma escolha, às vezes é uma necessidade, por sobrevivência.

“Pac disse que Thug Life, “vida bandida”, queria dizer The Hate U Give Little Infants Fucks Everybody,ou “o ódio que você passa pras criancinhas fode com todo mundo”. (p.21)

Há diversas referências não só à cultura negra, que vai de música, à séries de tv, (Um maluco no Pedaço se faz muito presente), mas também à História dos negros, dos líderes do Movimento Negro nos Estados Unidos, aos Panteras Negras e achei incrível o uso de “Jesus Negro”. Essa valorização da cultura negra me agradou muito.
Starr é uma personagem muito bem elaborada psicologicamente que ao longo da narrativa vai entendendo o poder que sua voz pode ter. Não só ela, mas todos os outros personagens têm características próprias, dramas próprios. Fora isso, a família de Starr, longe de ser perfeita, consegue mostrar o quanto é importante que se apoiem mutuamente e que demonstrem respeito pela dor e problemas do outro.
Angie Thomas tem toda minha admiração por ter escrito um livro que traz à tona uma discussão tão necessária quanto é a questão da morte de jovens negros pela polícia, mas não só, o livro, mesmo sendo ficção, no que diz respeito a brigas de gangues por território e à inserção dos jovens no mundo das drogas, mostra a realidade como ela é.

“Logo cedo, eu aprendi que as pessoas cometem erros, e você tem que decidir se os erros são maiores do que seu amor por elas”. (p.224)

O livro como um todo aborda o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), um movimento que, dentre outras ações, busca promover a reflexão sobre a violência policial para com jovens negros. Está aí sua importância. Ademais de ser escrito por uma autora negra, que tem total propriedade para tratar desse assunto, o livro é um Young Adult, portanto, direcionado a um público jovem, que está em formação. Acredito que irá contribuir muito para a nossa formação.
Uma leitura mais do que necessária por ser tão atual e real, por demonstrar uma realidade social não só dos Estados Unidos, mas também do Brasil. 

Com o título original The Hate U Give, a editora Galera Record fez um excelente trabalho ao trazê-lo para o Brasil. A tradução da Regiane Winarski ficou ótima, acredito que será apreciada pelo público brasileiro.

*Livro cedido pela editora.

11 respostas

  1. Desde o momento do lançamento de "O ódio que você semeia" fiquei com vontade de ler e depois da sua resenha bem a vontade ficou dobrada. Sendo professora, favelada, filha de gente negra esse tipo de história e as reflexões que vem com ela são necessárias para minha vida.

    Uma Pandora e sua Caixa

  2. Que droga. Fiz um comentário lindo e ele sumiu, porque minha internet caiu na hora de publicar T.T
    Mas eu quero elogiar a sua resenha, Maria. Ela está muito bem escrita e eu me arrepiei enquanto lia. Você sabe o quanto eu amei essa história! Acho que ela é muito pertinente para nossa realidade também, como você disse. Adorei o jeito que a Angie escreve e quero muito ler mais livros dela (acho que ela está escrevendo outro no momento). Também estou ansiosa para adaptação para o cinema. Até agora nenhum livro em 2017 superou esse livro e com certeza ele é um dos que vou levar para vida. Queria muito ele fosse lido em escolas e por todos. Com certeza o que não vai faltar é indicação nossa, né?

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  3. Se o livro for tão bom quanto a sua resenha, quero dissecá-lo logo!

    Adoro esse blog, adoro as suas resenhas. Já comprei livros depois de conferir teus comentários, tuas impressões sobre as obras. Acho que você ajuda muita gente postando as resenhas, ajuda a mim inclusive. Gosto demais do teu trabalho. Sem dúvida, uma das melhores blogueiras literárias. Continue assim, jamais desista. Muito bacana, o seu trabalho!
    Um abraço, Dieison Engroff.

  4. Oi, sua resenha está sensacional e amei a premissa do livro. O tema é muito importante e mesmo sendo de uma editora grande, não vi muito sobre ele, com certeza o quero em breve na minha estante. Bjs

  5. oie, nossa, que resenha ótima, já fiquei com muita votntade de ler, e isso aumentou pois realmente, esse tema de jovens negros serem mortos tem sido muito comum e precisamos falar sobre isso. Gostei de saber que a protagonista é bem construída psicologicamente, e parece um livro sem algo que desanime. Quero ler logo.

  6. Oi, Maria!
    Estou louca pra ler esse livro! Mal posso esperar para dar um jeitinho de comprar e mergulhar nesse enredo que parece tão incrível!
    E ainda tem um pouquinho do Tupac, não resisto mesmo! <3 rs.
    Adorei a resenha, fico ainda mais ansiosa para ler!

    Beijos
    Universo Tácito

  7. Oi!
    Tenho vontade de ler esse livro desde o lançamento por conta do tema extremamente pertinente que ele aborda. Fiquei contente em saber que a autora soube conduzir o tema e a protagonista da melhor maneira, sem deixar cair na faixa dá mesmice um assunto tão importante.
    Excelente resenha!
    Beijos!

  8. Olá!
    Menina, que resenha incrível, já havia visto esse livro ser bem comentado, e algumas pessoas loucas pelo lançamento, e estou mega ansiosa querendo conhecer essa historia que infelizmente é uma realidade em tantos lugares. Pretendo ler ainda esse ano e poder indicar para o máximo de pessoas possiveis. Parabéns pela resenha maravilhosa.

    beijos!
    http://blogdatahis.blogspot.com.br

  9. Olá! Minha vontade só aumenta lendo essa sua resenha. Parece ser um livro que mostra muito bem a realidade de negros que ainda sofrem e muito com o preconceito. Desde o lançamento desse livro que estou de olho. Adorei sua resenha!

    Beijos

    Vivian

    Saleta de Leitura

  10. Ótima resenha! Desconhecia a existência desse livro e tô entusiasmada pra lê-lo. 🙂 Um livro com um tema tão importante e atual. Mais um pra estante.
    Bjos!

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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