O sentimento de irmandade em “Não digam que estamos mortos”, de Danez Smith

“Caro número de distintivo

o que eu fiz errado?

nascer? ser preto? te conhecer?”

Danez Smith em Não digam que estamos mortos

Nenhum outro verso poderia exemplificar a urgência de termos alguém como Danez Smith entre nós. Suas imprescindíveis palavras são raivosas, estridentes, cruas e poderosas. De outro modo, obviamente, não poderia ser, afinal Smith escreve não apenas sobre sua vivência à margem enquanto negre, não-binário e soropositivo, elu também escreve sobre a violenta e racista polícia norte-americana, que coloca um alvo nas costas de cada corpo negro assim que ele coloca os pés fora de casa — algumas vezes eles nem precisam de fato estar fora de casa. Basta lembrar de Breonna Taylor, assassinada pela polícia dentro de sua casa —, e como consequência, a dor das mães que precisam enfrentar os inúmeros funerais de seus filhos. A solidão do homem negro e gay fora dos padrões também é abordada em um curto, porém doloroso poema, intitulado “& até perfis de caras negros dizem desculpe, não aceito negros, bem como o suicídio entre jovens negros.

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Conheci o premiado poeta Danez Smith por acaso em 2020, quando uma crítica literária que acompanho publicou uma entusiasmada análise sobre Don’t Call Us Dead, que ainda não possuía uma edição traduzida para o português. A profunda análise chamou minha atenção, de modo que revirei todos os cantos da internet atrás de uma edição do livro. Sem sucesso, li Black Movie (ainda sem tradução no Brasil), e ali Danez faz uma simbiose ao criar poemas usando filmes famosos e substituindo seus personagens icônicos por anacronismos da vida real. Logo, pessoas negras que transitavam na sua realidade tornam-se personagens imponentes. Em uma releitura de O Rei Leão, Zazu é interpretado por ninguém menos que o fantasma de James Baldwin. Já sabendo do talento do autore (que usa os pronomes they/them), mantive minhas atenções à uma possível edição física em inglês de Don’t Call Us Dead. O tempo passava lentamente e minhas esperanças eram inexistentes, até que a Bazar do Tempo publicou uma belíssima edição bilíngue traduzida por André Capilé com o título Não digam que estamos mortos.

tô de saco cheio de chamar tua imprudência de lei. Cada noite conto meus irmãos & pela manhã, quando alguns não sobrevivem pra serem contados, conto as covas que deixaram.” – Danez Smith em “cara américa branca”

Minhas altas expectativas foram devidamente atendidas, pois a escrita de Danez é densa e chocante, porém inevitavelmente bela. A raiva em Black Movie é triplicada aqui. Em “cara américa branca”, Danez escreve sobre como o sofrimento do negro nos Estados Unidos (e como não poderia deixar de ser, também no resto do mundo) o faz buscar outro planeta para viver. Em um dos momentos mais pujantes, fica impossível não relembrar a escrita igualmente avassaladora e raivosa de James Baldwin em Dark Days e The Fire Next Time — que embora não tenha sido de fato um poeta, era também negro, gay vítima de racismo interseccionalizado com a homofobia, inclusive dentro da comunidade negra; o que conversa diretamente com o supracitado “& até perfis de caras negros dizem desculpe, não aceito negros. Danez dá início ao seu poema épico falando que deixou a terra em busca de planetas mais escuros. Que quer outro Deus, pois o que lhe foi forçado possui inconsistências em seus milagres, e usa como exemplos os assassinatos de jovens negros pela polícia ocorridos até 2014, quando escreveu o poema. Sua insatisfação com Deus existe devido à relação entre religião e raça. Segundo elu, é impossível separar a escravidão da igreja cristã, o que vai de encontro com a famosa frase de Martin Luther King Jr., quando este disse que a hora mais segregada nos Estados Unidos é ao meio dia nos domingos. Em determinado momento ele escreve acerca do descaso da branquitude silenciosa: “eu tentei, gente branca. tentei branquelos, mas passaram o funeral do meu mano fazendo planos prum cafézinho, falando alto demais ao lado de seus ossos”. (p. 55)

a belíssima capa da versão original em inglês.

“lembre deste aperto quando os caras usarem a coisa
a te preparar pro desejo deles, quando te largarem

latejando, tenro, & assobiando pela boca errada
teus ossos trocados por jugos. você nunca terá suficiente

cuspe, & é assim que os caras vão te querer sempre: lesma limo
liso de um homem, contramãos de túnel convulsivo.”

Se toda manifestação artística pode e deve ser considerada um retrato de seu tempo, com Danez não é diferente. Notemos, por exemplo o terrivelmente atual trecho com intrínsecos detalhes de como é a navegação do corpo queer-não-padronizado de acordo com as leis arcaicas da nossa sociedade cisheteropatriarcal em “Uma nota sobre vaselina”. Seria quase uma utopia escrever o que ele escreve sem o fator político, sem o imediatismo da era da internet (“substituiram meu amigo por uma hashtag”), uma vez que o genocídio contra o corpo negro acontece de forma ininterrupta com o aval do Estado, ou, quando o corpo negro é usado sistematicamente para preencher as prisões norte-americanas. O autore faz uma crua análise sobre a objetificação do corpo negro que se mistura com história do produto em sua vida familiar, passando desde seu uso por suas tias como remédio para queimaduras de frituras, até chegar em seu uso erótico. Ainda sobre a objetificação do corpo negro, Danez coloca seu asterisco particular ao escrever sobre as preferências raciais em aplicativos de paquera voltados para homens gays, bissexuais e pansexuais em “Uma nota sobre o app de celular que diz a que distância estou da boca de outros homens”; e como aquele ambiente tóxico exclui corpos gordos, negros, latinos e afeminados. 

Danez Smith, fotografado por Richard Saker

A priori, Não digam que estamos mortos foi idealizado como dois livros: um sobre a negritude queer que é vítima da violência policial, e o outro, sobre a experiência do autore como soropositivo, mas graças aos editores Danez publicou todos os poemas em um único livro, e o segundo, que não foi publicado naquele ano, acabou se transformando em Homie, publicado em 2020, ainda não possui tradução em português.

O que considero o ponto alto dentro de um livro que é basicamente um amontoado de pontos altíssimos, é o fato de que Danez Smith escreve não apenas para o corpo negro, e sim para qualquer pessoa que se entenda queer, ou que faça parte de algum grupo marginalizado dentro da comunidade LGBTQIA+. Danez busca uma relação de irmandade com todes que se sentirem representades em suas palavras, mesmo que esse alguém seja um homem holandês de 65 anos vivendo na Alemanha. Fiquei profundamente feliz com a chegada de Danez Smith ao círculo literário brasileiro. Espero que esse texto possa de alguma forma gerar aos leitores do blog a mesma sensação experimentada por mim ano passado.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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