O último encarceramento: aprendendo sobre as prisões com Angela Davis em “Estarão as prisões obsoletas?”

“A cadeia é onde termina a história das pessoas.”  – Nadifa Mohamed

A prisão sempre me pareceu algo comum e necessário para a paz ser mantida. Até poucos anos eu nunca sequer havia pensado sobre o assunto. Apenas nos anos recentes eu comecei a pensar na relação policiais e assaltantes. No caso de um assalto — por ainda não estarmos vivendo no futuro imaginado em Minority Report —, os policiais chegam, em sua esmagadora maioria, após o crime ser cometido, nunca resolvendo a criminalidade, e sim apenas gerando mais violência e matando pessoas negras.

Continuando a relação entre o cinema e as prisões graças aos exemplos citados pela própria autora, muito do que sabemos sobre a vida dentro das prisões e penitenciárias de segurança máxima nos é apresentado de forma metódica e repetitiva em filmes e séries de TV. Eu, por exemplo, “conheço” a vida na prisão através dos filmes Noir que assisto compulsivamente. Desde os anos 30, quando “filmes de prisão” eram rodados aos montes, e muitos deles, sendo I’m a Fugitive from a Chain Gang (O Fugitivo, de 1932), You Live Only Once (Vive-se Apenas Uma Vez, de 1937), Brute Force (Brutalidade, de 1947) e Riot in Cell Block 11 (Rebelião no Presídio, 1954) denunciavam os maus tratos sofridos pelos encarcerados. Acho que todos nós, em algum momento de nossas vidas, já nos deparamos com alguma variação da cena com prisioneiros acorrentados ao sol quebrando pedras sob a vigilância de um guarda portando um cacetete ou um chicote.

Em Estarão as prisões obsoletas?, publicado no Brasil pela Difel em 2019, e com tradução de Marina Vargas, Angela Davis analisa o sistema prisional americano de meados de 1700 até 2003, ano da publicação do livro no original. O termo “Complexo Industrial Prisional” — que é basicamente uma cópia do Complexo Industrial Militar dos anos 50 nos Estados Unidos — pode ser entendido como um conjunto de relações políticas e econômicas que através do crescimento de prisões e penitenciárias privadas de segurança máxima aumentou substancialmente o número da população prisional do país através das décadas, mais precisamente a partir da era Reagan. Davis aponta o racismo sistêmico dessas instituições, uma vez que a população carcerária é formada em sua maioria por negros, latinos e indígenas, muitos deles mantidos presos por crimes pequenos, já que o país precisa de mais presos para manter suas prisões lotadas a ponto de novas precisarem serem construídas, gerando assim um ciclo contínuo de lucro das grandes empresas envolvidas no negócio.

Angela Davis dando uma palestra em 1972 atrás de vidros a prova de balas.

Uma crítica contundente feita por Angela Davis é a incessante criação de programas de TV sensacionalistas que tinham e têm a única e exclusiva função de gerar um alarme nacional acerca de uma criminalidade que muitas vezes está até mesmo em declínio. A autora escreve que na década de 90 esses programas eram líderes de audiência, quase quadruplicando sua popularidade, mesmo quando a taxa de homicídios havia caído pela metade. O resultado dessa falsa criminalidade que crescia sem parar foi, é claro, a criação de novas prisões mesmo com a diminuição da criminalidade. No Brasil programas como Cidade Alerta e Brasil Urgente me vêm rapidamente à cabeça quando falamos em sensacionalismo de porta de cadeia apresentado por homens brancos reacionários.

Um detalhe que me deixou perplexo foi o fato de que os prisioneiros não possuem o direito ao voto enquanto estão encarcerados, e uma vez fora da prisão após cumprimento de suas respectivas penas, eles continuam para sempre impossibilitados de votar. Ao levarmos em consideração o perfil racial de quem está encarcerado, fica evidente que essa lei é um plano descarado de evitar que pessoas negras, latinas e indígenas possam exercer seus direitos de cidadãos, e assim, talvez ficando impedidos de votar em candidatos que representem melhor suas ideologias. Acerca dessa vergonhosa lei, Davis observa que se negros e latinos tivessem direito ao voto em 2000, Bush jamais teria sido declarado presidente, a onda de racismo e xenofobia gerada após o 11 de setembro jamais teria acontecido, bem como as mortes inocentes resultantes da Guerra ao Terror contra o Iraque.

“A prisão  se tornou um ingrediente essencial do nosso senso comum. Ela está lá, à nossa volta. Não questionamos se deveria existir. Ela se tornou uma parte tão fundamental da nossa existência que é necessário um grande esforço de imaginação para visualizar a vida sem elas” .Angela Davis

Se Paul Preciado escreveu em Um Apartamento em Urano que a escola é o primeiro espaço de aprendizado da violência de gênero e sexual, Angela Davis nos avisa que o ensino americano valoriza a violência e a disciplina e não o desenvolvimento intelectual, preparando as crianças para a prisão. À  primeira vista, o livro pode ser considerado curto para a importância do assunto a ser discutido, mas não obstante, em apenas 144 páginas, Angela Davis constrói um impressivo e detalhado estudo sobre a população carcerária norte-americana. Dividindo o livro em 6 capítulos, a autora dá início ao seu trabalho nos perguntando se abolir o sistema prisional seria de fato a solução, uma vez que eles poderiam apenas reformá-lo. E ela usa números para provar seu ponto quando afirma que a abolição é a solução. Segundo a autora, até a publicação do livro, 9 milhões de pessoas viviam em penitenciárias e prisões ao redor do mundo, sendo 2 milhões de pessoas somente nos Estados Unidos. Para comparação, quando Davis começou a se envolver com o ativismo antiprisional  em 1960, o número de presos no país era de 200 mil. Ecoando e dialogando com o pensamento do escritor James Baldwin, que em seus ensaios, mais precisamente em Dark Days, e The Fire Next Time, denunciava o racismo sofrido pelos jovens negros na década de 60, que escolhiam se alistar e correr o risco de morrer em uma guerra do que sofrer com racismo, linchamentos e prisões em seu país natal, Angela Davis escreve: “Quando um grande número de jovens decide se alistar nas forças armadas a fim de escapar da inevitabilidade de uma temporada na prisão, deveríamos nos perguntar se não é hora de tentar oferecer melhores opções” (p.10).

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De acordo com a autora, à época da publicação do livro, havia o dobro de pessoas sofrendo com problemas mentais em prisões do que em hospitais psiquiátricos. Essas pessoas, se levarmos em consideração quão racista é o sistema prisional, são pessoas negras que antes da prisão, já enfrentavam diariamente a opressão policial, sofrendo constantemente como o perfilamento racial (o ato de suspeitar de uma pessoa de uma determinada raça, com base em características ou comportamentos observados ou assumidos de um grupo racial ou étnico, em vez de uma suspeita individual). Davis fornece dados ainda mais alarmantes: de 1852 até 1955 apenas 9 prisões foram construídas no estado da Califórnia. Ou seja, 9 prisões em quase 100 anos. Todavia, com a guerra ao crime inventada pelo presidente Reagan na década de 80, a construção de prisões aumentou de forma chocante: até a publicação do livro existiam 33 penitenciárias, 28 campos de detenção, 16 instituições correcionais, e 5 instituições para prisioneiras mães, totalizando 88 prisões em apenas um Estado. Atualmente cerca de 34 mil presos são negros, 56 mil são hispânicos e 26 mil são brancos. Para motivo de comparação, antes do fim da escravidão, 99% da população carcerária norte-americana era composta por pessoas brancas.

Pouco tempo após a abolição da  escravidão, políticos americanos, principalmente os do sul do país, se apressaram em aprovar leis que transformaram ex-escravizados em criminosos. Entre elas, a lei contra a vadiagem, que era passível de prisão. E como a escravidão acabou sem a elaboração de um plano para reinserir os quase 400 mil negros na sociedade, muitos se encontraram sem casa e sem emprego, alguns tendo que recorrer a pequenos furtos para sobreviver, e assim, ex-escravizados que “tinham acabado de ser libertados de uma condição de trabalho forçado perpétuo, podiam ser legalmente condenados à servidão penal” (p. 30). Em pouquíssimo tempo, o cenário se reverteu, e a maioria esmagadora da população carcerária passou a ser negra. Era uma reencarnação da escravidão.

“Angela Davis trabalha para trazer mudanças no sistema penal”

“Como a população carcerária feminina nas prisões agora consiste em uma maioria de mulheres de cor, os ecos históricos da escravidão, da colonização e do genocídio não devem passar despercebidos nessas imagens de mulheres acorrentadas e algemadas”. – Angela Davis

Ao escrever sobre a situação das prisões femininas no início do século 20, Angela Davis aponta a discrepância no tratamento e nas penas das mulheres negras, latinas e indígenas em comparação com as brancas. As mulheres negras não só recebiam penas severas, como também eram jogadas em prisões masculinas (antes do crescimento das prisões para mulheres, a prioridade era das detentas brancas, que eram vistas pela sociedade não como criminosas, e sim como um “erro de percurso” e assim, eram colocadas em prisões que eram construídas como casas, para serem ensinadas “a portarem-se como mulheres”, para poderem conseguir um marido ao fim de suas sentenças). Já as mulheres negras eram condenadas a penas muitas vezes maiores que as dos homens, e com isso, um movimento eugenista fazia com que mulheres negras passassem a maioria de seus anos férteis dentro da prisão, impedindo que vidas negras viessem a ser geradas no futuro. Em outras palavras, o sistema carcerário feminino da época pretendia transformar mulheres negras em empregadas domésticas, e as brancas em futuras patroas donas de casa submissas; tudo isso enquanto trabalhava para mandar mais pessoas negras para a prisão, inclusive mulheres que haviam matado maridos e companheiros abusivos.

Em última análise, mesmo que a atenção de Angela Davis tenha sido voltada para o sistema carcerário norte-americano, muito pode ser traduzido e aplicado na situação brasileira. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública o número de negros no sistema carcerário brasileiro aumentou 14% nos últimos 15 anos, já o número de brancos diminuiu 19%. De 657,8 mil presos à época da pesquisa 438,7 mil eram negros (ou 66,7%), sendo que atualmente o Brasil já ultrapassou a Rússia e agora é o terceiro pais com mais presos no mundo, num total de 812 mil.

“As prisões dos negros acontecem em razão das condições sociais, não apenas das condições de pobreza, mas das dificuldades de acesso aos direitos e a vivência em territórios de vulnerabilidade, que fazem com que essas pessoas sejam mais cooptadas pelas organizações criminosas e o mundo do crime. Mas essas pessoas também são tratadas diferencialmente dentro do sistema de justiça. Réus negros sempre dependem mais de órgãos como a Defensoria Pública, sempre têm números muito menores de testemunhas. Já os brancos não dependem tanto da Defensoria, conseguem apresentar mais advogados, têm mais testemunhas. É um tratamento diferencial no sistema de justiça. Os réus negros têm muito menos condições que os réus brancos”. – Amanda Pimentel, pesquisadora do Fórum.

Nós, brasileiros, podemos aprender muito sobre o Complexo Industrial Prisional através das palavras de Angela Davis, e se seu objetivo ao escrever Estarão as prisões obsoletas? era nos fazer repensar nossas certezas a respeito das prisões, ou talvez até mesmo desejar um mundo livre delas, não resta dúvidas: após um livro tão esclarecedor, acredito que quem o escolher — e eu indico veementemente — como leitura em 2021 sairá da experiência com uma ideia totalmente diferente acerca das prisões, pensando muito mais na educação, na descriminalização das drogas e do trabalho sexual, e na geração de empregos com salários justos como salvação para a criminalidade, ou como a autora escreve “a transformação dos corpos encarcerados — e eles são, em sua maioria, corpos de pessoas de cor — em fontes de lucro que consomem e, muitas vezes, produzem todo tipo de mercadoria devora recursos públicos que poderiam ser utilizados em programas sociais nas áreas de educação, habitação,  assistência à infância,  lazer e combate às drogas” (p. 95).

Muitos chamaram isso de pensamento utópico e talvez até seja o caso, mas o importante é chamar atenção para o problema. Com toda certeza não iremos viver em um mundo sem prisões, nem mesmo nossos bisnetos sequer terão chances de viver em um mundo sem prisões, visto que de acordo com o estudo citado acima, o número de prisioneiros no Brasil ultrapassará 1,5 milhão até 2025. Aliás, como Davis escreve logo no primeiro capítulo, a ideia que fomos forçados a ter sobre a prisão é tão imprescindível que de fato fica impossível olhar para os próximos séculos com otimismo, porém após ler esse magnífico livro tudo que podemos fazer a curto prazo é indicar aos nossos amigos e implorar para que eles indiquem aos seus outros amigos, criando assim uma corrente que busque mostrar como é possível sim, viver sem prisões.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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