Olhos d’água- Conceição Evaristo

 

Este é um livro de contos, quinze no total, precedidos de um prefácio assinado por  Heloisa Toller Gomes e uma introdução assinada por Jurema Werneck.
O primeiro conto é o que dá título ao livro, Olhos d’água, li arrepiada do começo ao fim. A personagem principal é uma mulher que não tem nome, recurso que faz com que o leitor possa se identificar mais com a história dela. Uma noite essa mulher acorda e se pergunta de que cor eram os olhos de sua mãe. Se assusta ao perceber que não lembra, o que é estranho porque todas as outras coisas ainda estão em sua memória: as brincadeiras que faziam juntas com suas irmãs e até mesmo do choro de sua mãe quando chovia, por medo da chuva derrubar seu barraco.
Tem uma parte em que a personagem lembra que na sua infância ela e suas irmãs sentiam fome e a mãe tentava distraí-las para esquecerem da fome. Isso me fez pensar  muito em Carolina Maria de Jesus e seu “Quarto de Despejo”, do quanto ela batalhou para não deixar seus filhos morrerem de fome. O conto termina de uma forma muito simples e profunda.

“Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida”. (p.16. Conto “Olhos d’água”)

Ana Davenga é o segundo conto. A narrativa é feita em terceira pessoa, nos levando a conhecer Ana e como ela adquiriu o sobrenome Davenga, que é o nome do homem com quem ela mora.
O conto começa com Ana passando por uma situação muito comum para as mães ou esposas de homens negros: não dormir enquanto o homem não chega em casa, uma vez que o homem negro é o mais perseguido pela polícia. Fora isso, Ana sabia que Davenga tinha mesmo que temer a polícia por outras questões.
É muito tocante a forma como a narrativa é conduzida e mais tocante ainda a forma como termina.

“Sabia dos riscos que corria ao lado dele. Mas achava também que qualquer vida era um risco e o risco maior era o de não tentar  viver”. (p.26. Conto “Ana Davenga”)

“Maria” é o quarto conto, o que levou o meu nome e as minhas lágrimas. É a história de uma mulher que está voltando da casa da patroa um dia depois de uma festa promovida pela outra e ganhou os restos das comidas e uma gorjeta para levar aos três filhos. Ganhou também frutas e no caminho se perguntava se eles iriam gostar, nunca tinham comido melão. Como a casa não era muito perto do trabalho e ela estava cheia de sacolas, decidiu ir de ônibus, no qual teve um encontro que mudou de forma trágica todos os seus planos.
É  um conto que explicita a maldade humana e o quanto agir por impulso em um momento de raiva pode levar a um caminho sem volta.
Em Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos, nono conto, pesado e doloroso, o leitor é levado por caminhos que mesmo antes de chegar no final, já imagina o que vai acontecer. E acontece. Um família pobre, uma mãe, quatro filhos, dois meninos e duas meninas gêmeas, Zaíta e Naíta. Um dos filhos não aceita sua condição de pobreza e começa a se envolver no mundo do crime. Claro que isso não podia terminar bem.
Nos demais contos, vão ser abordados assuntos como gravidez na adolescência, aborto, relacionamento abusivo, traição, ameaças, a correria da vida, crianças em situação de rua. Há contos que mostram como que é a verdadeira vida no morro, há outros que apresentam a morte como uma solução para vida, todos tratam de assuntos diferentes, mas uma boa maioria assemelha-se em sua tragicidade, o que faz com os finais sejam sejam sempre surpreendentes. Em todos há o uso de substantivos compostos, o que confere uma beleza e sensibilidade ímpar à narrativa.
É uma leitura rápida, mas não por isso menos profunda e marcante.

9 respostas

  1. Olá, ainda não conhecia esse livro mas depois do seu post é uma leitura na qual fiquei interessada. Gosto muito de contos, e pela sua resenha me parece que esse livro traz histórias bem fortes através do olhar feminino.

  2. Olá!

    Conheço a autora por causa da faculdade, mas não conhecia esse livro, achei muito simples, porém muito real e tocante. Adoro contos, e como faz um tempinho que não leio nenhum, esse veio na hora certa. Obrigada pela dica!

  3. Não conhecia mas estou enpolgada para ler depois dessa resenha o primeiro conto e o quarto são os que me deixam mais curiosa, pela sya resenha já fiquei tocada e imagino que a leitura seja marcante.
    Abraços

  4. Oi, Maria!
    Não conhecia o livro, mas curto bastante livros de contos por possibilitar vários enredos e personagens em um único volume. A leitura parece ser bem intensa e dolorosa em um todo, mas realmente emocionante e por vezes até importante ao trazer temas tão atuais e, infelizmente, tão presentes em nossa sociedade, como o aborto, crianças na rua, relacionamentos abusivos e todos nessa vibe. Não é uma leitura que me chame a atenção no momento principalmente por não me sentir apta aos temas citados por hora, mas quem sabe em um outro momento, outro dia? Valeu a dica.
    Beijos!

    ♥ Sâmmy ♥
    ♥ SammySacional.blogspot.com.br ♥
    ♥ DandoUmadeEscritora.blogspot.com.br ♥

  5. Oi,
    Não conhecia o livro, mas só de ler a sua resenha fiquei motivada, os contos parecem ser intensos, bem pontuados e tão reais. Fiquei bem curiosa para realizar a leitura e conhecer essas mulheres, que podemos nos identificar nelas. Adorei a resenha!
    Beijos

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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