Crescer não é nada fácil. E se não é quando se tem as coisas no lugar, o contrário torna essa caminhada ainda mais espinhosa, cheia de curvas inesperadas e desgastante. É o que acontece com Abigail, personagem central do romance Os tais caquinhos (Companhia das Letras), de Natércia Pontes.
Narrado por meio de capítulos breves – que mais funcionam como episódios –, Os tais caquinhos é um mergulho na intimidade de alguém que cresce em meio a uma família disfuncional, e as consequências dessa experiência para esse alguém. No romance, Abigail vive com seu pai, Lúcio, e sua irmã mais nova, Berta. Sem que saibamos o porquê, sua mãe os abandonou, levando consigo suas outras irmãs. E o cotidiano dessa família que fica passa ao largo daquilo que poderia ser tido como convencional. Uma vida em desalinho.
Uma das primeiras coisas que chamam atenção no romance é o apartamento caótico no qual a família de Abigail vive. Imundo e desorganizado, não são poucos os momentos em que Pontes nos entrega cenas nas quais todo o desasseio dessa casa é quase palpável. São baratas que não se sentem acuadas naquele lar, caixas e mais caixas de livros que se desmancham cedo ou tarde, uniformes escolares sujos etc e etc. Isto sem contar a escassez de comida – se não ganharem ovos das vizinhas, as crianças correm o sério risco de só ter o almoço que fazem fora como única refeição do dia. Tratar esse ambiente mal arranjado como uma representação tácita da vida desses três é uma analogia dada de graça pela autora.
Se Lúcio vive num estado de apatia extrema a ponto de deixar as filhas à beira do desamparo – é importante sentir fome, ele diz em algum momento – , Berta se faz ausente quase que por completo. Passa a maior parte do tempo colada em sua amiga, Mariana. Praticamente mora em sua casa, recebendo atenção e cuidados de sua mãe, inclusive. E apesar da proximidade óbvia de ambos com Abigail, a sensação é de que eles são periféricos a ela. O que de certa forma isola a garota com seus dilemas pessoais e escolhas vacilantes. Uma vida solitária.
A adolescência de Abigail é permeada por silêncios que a todo tempo ensaiam um esporro. Do tédio dos dias em que nada acontece aos dias em que ela conhece todos os motéis da cidade com um dos seus namorados. De repente uma cisão que a abala e ela continua a andar, seja lá para onde. Vestindo uma camisa da Obituary com Sepultura, Faith No More ou qualquer banda de rock pesado embalando suas inquietudes, Abigail vai tentando desbravar a vida como pode, tentando achar passagens nos pequenos vãos em meio ao seu dia a dia. Seja por curiosidade ou por apenas dar de ombros, a menina se joga nas mais diversas experiências que lhe aparecem pela frente. E como acontece com boa parte da juventude que sente-se deslocada ao mesmo tempo que tenta se entender, ela se permite ao sexo e às drogas de maneira que assustaria qualquer adulto desavisado e que não presta muito atenção ao seu redor. Seja para buscar algo que a preencha ou apenas porque é o que se tem para o hoje.
Os tais caquinhos é um romance em que aparentemente nada acontece, mas a todo o momento consegue nos pôr dentro desse turbilhão que é crescer sem ter perspectiva alguma, apenas uma esperança insegura. Por ser narrado em primeira pessoa, no que por vezes parecem notas de um diário de alguém que só encontra ali um espaço para se perceber inteira, Natércia Pontes consegue imprimir um tom pessoal, quase confessional ao texto. A autora também acerta ao fazer da (falta de) noção de tempo um reflexo interessante das incertezas dos dias que passam sem que se perceba. Pelo menos não com exatidão, ou melhor, com pouca ou nenhuma importância. A irrelevância presente em todo o romance parece proposital. O que faz dele uma provocação despretensiosa a esse sentimento de que a vida precisa ser gloriosa ou ao menos cheia de emoção quando na maioria das vezes ela é na verdade isso, um amontoado de dias sem que muita coisa aconteça, podendo seguir infindamente de tal maneira ou acabar na cena anterior.
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