Para escrever outro Brasil: “Uma história feita por mãos negras”, de Beatriz Nascimento

Beatriz Nascimento é mais um caso de intelectual brasileira cuja invisibilidade em torno de seu trabalho e sua trajetória deveria ser considerada um sacrilégio ou coisa do tipo. Até temos algum esforço para fazer com que a sua grandiosidade seja cada vez mais reverberada – e aqui citamos o exemplo da União dos Coletivos Pan-Africanistas, que em 2018 organizou o livro Beatriz Nascimento: quilombola e intelectual –, mas para o grande público ela segue um tanto quanto desconhecida. Além de historiadora, professora e poeta, Nascimento foi uma das mais importantes ativistas de nossa história, sendo nome imprescindível para o movimento negro brasileiro. Uma história feita por mãos negras (Zahar) reúne textos expressivos da autora, um volume essencial tanto para quem já admira o seu trabalho quanto para aqueles que desejam conhecê-lo.

Organizado pelo geógrafo e antropólogo Alex Ratts – cuja introdução da edição também é do autor –, Uma história feita por mãos negras abarca uma produção que fora escrita entre os anos de 1974 e 1994, e com a qual temos contato com as preocupações e interesses de Nascimento, uma pesquisadora rigorosa – apesar de alguns problemas que são muito bem apontados por Ratts na introdução da obra – e que leva seu trabalho muito a sério. Uma produção que tem muito a acrescentar às referências bibliográficas de quem se preocupa em pensar o Brasil de ontem, de hoje e do amanhã.

Dividido em quatro partes, o livro traz ensaios, artigos e resenhas que tratam de questões raciais, questões de gênero, discussões em torno da cultura, escravidão, intelectualidade dentre outros assuntos. Alguns temas recebem mais atenção do que outros, portanto, são mais recorrentes. Ainda assim todos são abordados com a devida importância. É o que acontece com as resenhas presentes na coletânea, por exemplo. Ao comentar obras de outros autores, Nascimento não se priva de ser contundente. Inclusive, nos lembra que o negacionismo e a desonestidade intelectual tão presentes nos dias atuais já eram uma questão na década de 70. Tanto é que em uma das resenhas há uma nota do organizador lançando luz para o fato de que Nascimento cobra a completude de referências e fonte das citações que aquele autor utiliza. Algo que, à época, não era padronizado.

Vale mencionar que entre os textos de Uma história feita por mãos negras estão alguns de seus mais importantes, como é o caso de “Por uma história do homem negro”, no qual Nascimento defende que “a história da raça negra ainda está por fazer, dentro de uma história do Brasil ainda a ser feita”, e de “A mulher negra e o amor”, no qual busca pensar este afeto de forma política, convidando a mulher negra a desmitificar o conceito desse sentimento, “transformando-o em dinamizador cultural e social (…), buscando mais paridade entre os sexos do que a ‘igualdade iluminista’”.  Sem dúvida alguma, um ótimo panorama da colaboração intelectual da autora.

Contudo, talvez o maior chamariz de Uma história feita por mãos negras esteja na rica produção de Beatriz Nascimento acerca dos quilombos e suas figuras históricas. Não à toa, uma das partes do livro os tem como objeto – a parte três, “O quilombo como sistema alternativo”, cujos trabalhos têm relação com o projeto de pesquisa de Nascimento, “Sistemas sociais alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas”, que fora desenvolvido entre 1978 e 1981. Nas segunda e quarta partes do livro, há outros ensaios a respeito deles. Fica claro que esse é um tema central em sua obra. E a partir do seu trabalho, temos conhecimento sobre a estruturação dos quilombos, detalhamento de pesquisas, acesso à metodologias, algumas respostas e muitas perguntas. A preocupação de Nascimento é tratar dos quilombos com a seriedade que lhes são necessárias. Com isso, tenta se esquivar como pode da paixão para encarar os fatos (e os dados) pelo que são, respeitando seus contextos e subjetividades. É um trabalho primoroso, que além da pesquisa bibliográfica, a faz pôr seu corpo em campo, o que, inclusive, a leva para Angola. A fortuna crítica que Beatriz Nascimento produz  a respeito dos quilombos é imensurável.

Por fim, fica claro que Uma história feita por mãos negras é uma obra urgente. E embora seus textos mais recentes datem de 1994, a sua colaboração para o Brasil de hoje é incontestável. Seja para tentar entender o país como um todo, seja para conhecer mais um pouco da história do negro brasileiro. E como Beatriz Nascimento bem argumenta, quando se trata de história total, oitenta anos são apenas dias. Portanto, conhecer a perspetiva de uma intelectual de tamanha estatura sobre temas tão caros só tem a acrescentar a toda essa dinâmica. E em tempos nos quais um revisionismo histórico movido apenas por ideologias torpes e desejos de dominação estão sempre à espreita, trabalhos sérios e preocupados com a sua qualidade como esses que encontramos em Uma história feita por mãos negras são um acalanto. Diante desta interminável disputa de narrativas, nada se compara a estar do mesmo lado de alguém como Beatriz Nascimento.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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