Paraíso- Toni Morrison

Texto por William/Lenny
 
Introdução
 
Eu enfrentei obstáculos para encontrar meu lugar enquanto pessoa birracial por toda a minha vida. Com mãe biológica negra e pai biológico negro de pele clara, fui adotado ainda criança por pais brancos. Ter sido criado em um ambiente completamente embranquecido distanciou-me de minhas raízes negras ao mesmo tempo que moldou minha maneira de pensar e (re)agir. Foi como se metade da minha identidade tivesse sido arrancada de mim, me privando de viver, absolver e aprender com a riqueza da cultura negra.
 
Naveguei, desde criança, por uma área nebulosa de não pertencer completamente a nenhuma raça: sempre soube que era filho de pais negros, mas ao mesmo tempo sempre soube que não era negro… muito menos branco. Fui classificado como “pardo” na certidão de nascimento, mas ignorei esse detalhe ao descobrir que o termo é utilizado como forma de diluir a identidade de negros de pele clara e mestiços por ser socialmente mais aceito.
 
O resultado desse desligamento com as minhas raízes, uma vez que nunca tive contato com minha mãe biológica, ou com a sua família, causou uma deformidade na minha formação enquanto ser humano. Foi apenas na adolescência, no mês da Consciência Negra, quando uma professora de História me abordou, pedindo para que eu desfilasse junto com os alunos negros que percebi que algo estava faltando: finalmente me descobri racial, cultural e politicamente incompleto.
 
Já adulto, fui aos poucos tentando me reconectar com a minha identidade racial: devorei tudo que fosse relacionado com a cultura negra. Autores, cantores, diretores, amigos, qualquer coisa. Eu tentei de todas as formas me reencontrar. Foi assim que cheguei ao nome de Toni Morrison. Quando soube que o colorismo, a miscigenação, e a busca ao pertencimento eram a base de Paraíso, eu simplesmente fui atraído ao livro e mergulhei naquela jornada como se fosse, de um jeito ou de outro, a minha própria. Como se eu fosse um dos vários mestiços perambulando naquelas ruas, em busca de se encontrar, de encontrar um lugar, de encontrar o amor, seja lá o que isso signifique. Me emocionei enquanto lia as quase 400 páginas da edição que tenho em mãos. Chorei, sorri, e vociferei palavras tão feias que não seria educado colocá-las aqui.
 
Paraíso, Toni Morrison
 
“Eles atiram na garota branca primeiro. Com o resto podem demorar. Aqui não há pressa. Estão a vinte e sete quilômetros de uma cidade que, por sua vez, fica a cento e quarenta e cinco quilômetros de qualquer outra cidade. Esconderijo é o que não falta no Convento, mas tem tempo, e o dia acabou de começar. Eles são nove, mais que o dobro do número de mulheres que tem a obrigação de trucidar ou matar, e possuem a parafernália para qualquer dessas exigências: corda, uma cruz de folha de palmeira, algemas, porretes e óculos escuros, além, de belas e boas armas.”
 
É assim que Toni Morrison inicia seu primeiro livro após receber o Nobel de Literatura em 1993. Paraíso é dividido em nove capítulos: o primeiro, “Ruby”, é o nome do pequeno vilarejo em que grande parte da história se passa, e ao mesmo tempo, homenageia uma personagem negra que, antes mesmo da história começar, morre após ter atendimento negado por médicos brancos.
 
Os títulos dos oito capítulos restantes são nomes das mulheres que por algum motivo viviam no Convento. Cada uma delas, vale destacar, acaba naquele lugar por causa de violência doméstica, abuso sexual, aborto ou algum tipo de crime praticado por elas. Uma delas, Mavis, é procurada pela polícia após acidentalmente matar, por sufocamento, seus dois filhos pequenos ao deixá-los trancados em seu carro (enquanto comprava comida para o marido abusivo). Ela passa o restante da história sofrendo de paranoia, e tendo visões dos filhos mortos. Toni Morrison, com bastante perspicácia, usa esse acontecimento para nos mostrar como um relacionamento construído tendo como base o patriarcalismo, a misoginia e a violência de gênero não falha em deixar sequelas irreparáveis na saúde mental da mulher.
 
A jornada tem início em 1975, e sem perder tempo, já no segundo capítulo, a autora retorna aos traumas causados pela escravidão e o final da guerra civil, quando nove famílias de ex-escravos, cansados das várias formas do racismo sulista, fundam em 1890 uma pequena vila só de negros retintos chamada “Haven”. Atenção ao termo retinto: na busca pelo local para o seu Paraíso, os negros retintos eram frequentemente vítimas de racismo por negros de pele clara, já que estes possuíam algum tipo de status naquela sociedade, e como resultado, a principal regra desse paraíso era gerar filhos entre si, criando assim, gerações retintas perfeitas e não miscigenadas.
 
A vila cresceu e prosperou por décadas, porém, após a Segunda Guerra Mundial vários homens, já heróis, retornavam de batalhas com novos traumas. Ao perceber que o racismo e colorismo, inclusive dentro da comunidade negra ainda era forte, quinze famílias decidiram abandonar Haven e fundar Ruby: uma nova cidade só de negros. Ruby é uma cidade tão perfeita que não possui nem cemitério nem cadeia: ninguém morre, inclusive de velhice, e ninguém comete crimes, ou, ao menos, ninguém assume os crimes que comete.

Grande parte da história acontece em um Convento. Esse Convento, aliás, é praticamente o protagonista do livro: construído em forma de uma bala de revólver (ou um objeto fálico, se preferir) e sem janelas em sua parte final, não é na verdade, mais um convento. Durante muito tempo a construção serviu de escola para que garotas indígenas pudessem perder suas raízes; agora o lugar funciona praticamente como um ponto no meio do nada em que mulheres perdidas (“perdida” aqui possui uma infinidade de interpretações) passam a noite, ou à procura de ajuda.
 
Em uma viagem ao Brasil, Toni Morrison ficou sabendo de um grupo de homens brancos católicos que supostamente teriam invadido um convento para matar mulheres negras que praticavam o candomblé. Anos mais tarde ela descobriu que essa história na verdade nunca aconteceu, não obstante, optou por usar o candomblé como premissa para examinar a consciência negra americana, o senso de identidade contrário às raízes excludentes e racistas do cristianismo, e ao mesmo tempo, tentar entender como um homem supostamente do bem se transforma, ou pode se transformar em um assassino quando está na presença de um grupo igualmente ou mais machista que ele.
 
A autora acerta ao criar com maestria uma obra realista que inclui momentos que fazem a história ganhar tons góticos que nos remetem ao século 17, quando várias mulheres inocentes foram queimadas vivas sob a acusação de serem bruxas. Envergonhados pelo fato de existir um grupo de mulheres que se recusam a viver como propriedade dos maridos, os homens chegam a acusá-las de serem bruxas, de serem lésbicas, de serem satanistas à procura de sangue. Como citado acima, essa épica jornada de sobrevivência acerta ao adotar um tom realista ao fazer com que os personagens enfrentem não apenas as sequelas da escravidão e o transtorno pós-traumático causado por três guerras, mas também ao mostrar como as mortes de importantes nomes da luta do movimento dos direitos civis, como Martin Luther King, Malcolm X, Bayard Rustin e os irmãos Kennedy afetou política e espiritualmente a vida daquelas pessoas.
 
Por meio de passagens pesadíssimas, a autora constrói uma tensão avassaladora que nos choca ao nos apresentar a cada uma das mulheres. Durante as várias décadas nas quais os capítulos se situam, Toni Morrison abusa de um talento indiscutível para nos mostrar a quantidade de sofrimento que cada uma das oito mulheres precisou suportar antes de criar coragem para abandonar entes queridos e suas raízes para viverem em uma mansão abandonada no meio do nada, administrada por uma mulher cega que, sequestrada por uma das freiras quando era apenas uma criança, pode ou não ter poderes sobrenaturais.
 
A forma não linear que Toni Morrison escolhe para escrever a história dos moradores de Ruby pode causar estranhamento e confusão ao leitor distraído, pois ela pode (e vai) regressar ou avançar dez, vinte, as vezes cem anos no tempo sem aviso, e muitas vezes no meio de um capítulo. Muitas vezes essa forma de escrita utilizada em Paraíso, assim como a enorme quantidade de personagens (mais de trinta personagens principais andam livremente pelo livro!), é listada como um ponto negativo por leitores que chegam desavisados na obra da autora. Se esse for o seu caso, sugiro escolher algum título mais acessível para se aventurar na primeira viagem.

Paraíso é um livro indispensável, e se as mulheres sobreviveram ou não ao massacre anunciado no primeiro parágrafo, uma coisa é certa: você nunca mais será o mesmo após essa experiência.

2 respostas

  1. Sim, sou uma pessoa que ainda não leu nenhum livro de Toni Morrison e estou muito errada. Amei a sua resenha, o livro parece interessante e necessário. Obrigada. Vou providenciar a leitura para ontem.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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