Eu
Que nunca soube
Empinar uma pipa
Percebo hoje que queria sê-la
A pintar piruetas no céu
(Das pipas)
Transviados, publicado em 2020 pela Editora Patuá, é o primeiro livro de João Pedro Cerdeira. O título vem do primeiro poema do livro “Transviados: tudo puta; trans, viado”. Nesta obra já é possível perceber alguns interesses deste jovem autor, que escolhe uma frase do Foucault como epígrafe “A vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte?”, a partir de então, enquanto leitora, me sinto convidada a ler Transviados como uma abertura do íntimo do poeta através de sua arte.
Transviados me lembra, em alguma medida, a literatura do Caio Fernando Abreu, nas reflexões e na expressão da subjetividade. É um livro, entretanto, que tem outras marcas de época, outras referências, outros temas, outras questões. Digo isso porque Transviados aborda a homoafetividade do ponto de vista de quem viveu uma abertura maior da sociedade para essa pauta. É perceptível que depois da união civil entre casais do mesmo sexo ter sido legalizada muita coisa mudou, as discussões em volta desta pauta mudaram e isso se manifesta nas produções literárias também.
No segundo poema, “poema da (minha) necessidade”, temos: “É preciso casar, João. É preciso admitir que drummond fez este poema precisamente sobre mim”, aparentemente as questões envolvendo a homoeafetividade parecem se resolver com a possibilidade de um casamento, mas eu questionaria, será que é preciso casar mesmo? Sigo com esta questão ao longo da leitura do livro, o que mais me chama a atenção em Transviados é que sua poética está na linha tênue entre o desvio do padrão heteronormativo em um corpo transviado e a assimilação de várias normas impostas por esse próprio padrão. A própria existência no desvio de um suposto padrão é transgressora, mas em Transviados podemos ver a influência de várias referências que fortalecem a cultura heteronormativa e formaram algumas gerações.
Com um tom autoficcional, Transviados dialoga com as discussões sobre o amor e as relações contemporâneas. Para além disso, outros temas aparecem em forma de poesia como a transição para a vida adulta (“poema da (minha) necessidade”), a sexualidade, o amor e o uso das tecnologias. Dentro do livro encontramos também algumas séries de poemas que constroem um mesmo tema como por exemplo o exercício da escrita. Embora seja um livro de poemas, é possível imaginar que João Pedro Cerdeira também estivesse escrevendo um romance durante a composição de Transviados. Temos várias referências ao livro do conjunto de aulas A preparação do romance, de Roland Barthes e também ao Fragmento do discurso amoroso. Também é perceptível (e acho bonito) que autoras mulheres também façam parte das referências poéticas do livro, temos um poema chamado “as mestras” e muitas referências à Clarice Lispector, Ana Cristina Cesar e Paloma Vidal, que inclusive, escreve o prefácio de Transviados.
Uma série de poemas que gostei bastante foi a “Me mére”, que mostra a relação do poeta com a mãe. Há ainda uma série que versa sobre as relações mediadas pela tecnologia e questões de contemporaneidade (Cyberamor) e uma porção de Haicais em que João Pedro Cerdeira experimenta a linguagem nesta forma poética. O centro poético de Transviados, no entanto, parece residir na série “Distinções” que traz um questionamento dos padrões como no verso “Os gays dos filmes não tem barba e nem estrias”. Este tipo de questionamento que ressoa no livro todo também aparece no poema “Era uma vez”:
O que houve com o felizes pra sempre?
E com o conto de fadas pós-moderno
post-punk, underground
Do príncipe que beija príncipe?
Será que o príncipe virá,
Pra tornar a vida mais bela?
Ou sou só mais um viado
com complexo de Cinderela?
Os poemas de Transviados são curtos, podendo ou não ser tragados como cigarros, porque através de uma linguagem “deliberadamente cor de rosa choque” (como diria o próprio autor) João Pedro Cerdeira traz uma poética viada, reflexiva e sensível sobre como é ser “transviado” nos dias de hoje. Um livro de poesia que traz o frescor da juventude e da liberdade de ser o que se é.
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