Importante intelectual brasileiro, Milton Santos foi um geógrafo cujo trabalho fora – e ainda é – bastante prestigiado, tendo, inclusive, recebido em 1994 o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud, a mais alta honraria da área. Autor prolífico e traduzido para diversos idiomas, também teve uma carreira acadêmica ímpar, se tornando professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Publicado originalmente em 2000, Por uma outra globalização (Record) é um dos seus trabalhos mais expressivos, no qual ele discute a globalização capitalista e os problemas que vêm a reboque de se lidar com a vida por esse viés.
A leitura que Milton Santos faz da globalização é muito interessante. Ela passa por perspectivas diferentes, lhe permitindo encará-la tanto como fábula, como perversidade, e também como um meio que tem o poder de nos proporcionar uma nova realidade, mais humana e não focada no dinheiro. Isto é, uma outra globalização. Para tanto, o autor mergulha nas entranhas dessa questão a fim de dissecá-la e, portanto, nos mostrar o porquê dela existir como existe.
Das três maneiras mais palpáveis que Santos pensa a globalização, a ideia de “fábrica de perversidades” é a que talvez chame mais a atenção. Segundo o autor, é a partir dela que “o desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias perdem qualidade de vida. O salário médio tende a baixar. A fome e o desabrigo se generalizam em todos os continentes. Novas enfermidades como a SIDA se instalam e velhas doenças, supostamente extirpadas, fazem seu retorno triunfal. A mortalidade infantil permanece, a despeito dos progressos médicos e da informação. A educação de qualidade é cada vez mais inacessível. Alastram-se e aprofundam-se males espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção”. Um prognóstico assustadoramente atual.
Vista por Santos como o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista, a globalização é fruto do que ele enxerga como uma adesão desenfreada por parte da humanidade aos comportamentos competitivos cada vez mais naturalizados. E como vê a história do capitalismo sendo dividida por períodos históricos, o autor enxerga na globalização o seu período histórico atual. Mas vai além: é um período que também é uma crise. Crise essa, estrutural, que tem como alicerce tanto a tirania do dinheiro como a tirania da informação.
A propósito, a percepção que Milton Santos tem do que chama de violência da informação merece atenção. Para o autor, um dos fatores que constituem a perversão da globalização é a maneira como a informação é oferecida à população. Segundo ele, “o que é transmitido à maioria da humanidade é, de fato, uma informação manipulada que, em lugar de esclarecer, confunde. Isso tanto é mais grave porque, nas condições atuais da vida econômica e social, a informação constitui um dado essencial e imprescindível. Mas na medida em que chega às pessoas, como também às empresas e instituições hegemonizadas, é, já, o resultado de uma manipulação, tal informação se apresenta como ideologia”. Outra vez, assustadoramente atual.
Outra ideia instigante exposta por Santos é a de uma violência estrutural (que culmina numa perversidade sistêmica). Para o autor, essa violência estrutural se origina tanto da presença como das manifestações conjuntas do que chama de dinheiro em estado puro, competitividade em estado puro e potência em estado puro, que, não por acaso, são responsáveis por novos autoritarismos, o que, segundo Santos, corrobora a ideia de que vivemos em uma época que se assemelha mais à noção de globalitarismo do que propriamente globalização.
Milton Santos afirma que uma nova noção de riqueza é imposta pela globalização à qual todas as economias nacionais são chamadas a se adaptar. Nessa realidade, a busca desesperada por dinheiro é incentivada, seja por medo ou necessidade. Isso faz com que as cidades e as regiões passam a funcionar sob a lógica da competitividade, que, como o próprio autor diz, se difere da concorrência, sendo “uma espécie de guerra, em que tudo vale e, desse modo, sua prática provoca um afrouxamento dos valores morais e um convite ao exercício da violência”. E para se exercer essa competitividade em estado puro a fim de se conseguir o dinheiro em estado puro, o poder – também chamado por Santos de potência – também precisa ser exercido da mesma forma. Para tanto, o uso da força é imprescindível. O que nos leva à perversidade sistêmica, nos forçando a viver “num mundo de exclusões, agravada pela desproteção social, apanágio do modelo neoliberal, que é, também, criador de insegurança”.
Contudo, não são apenas más notícias que Milton Santos traz em Por uma outra globalização. O próprio autor comenta em seu prefácio que quem ler os primeiros capítulos da obra somente, o achará um pessimista, e quem fizer o mesmo, mas com os capítulos finais, o imaginará otimista. Isso, quando na verdade, a sua intenção é a de tratar da realidade como ela é. Isso posto, ele traz reflexões e algumas proposições que podem nos lançar luz ao que ele já sugere com o título de seu trabalho. Para Santos, isso começa com um regresso às noções de nação, solidariedade nacional e Estado nacional. Segundo ele, “de um ponto de vista prático, voltaríamos à ideia, já expressa por nós em outra ocasião, da constituição de uma federação de lugares, com reconstrução da federação brasileira a partir da célula local, feita de forma que o território nacional venha conhecer uma compartimentação que não seja também uma fragmentação. Desse modo, a federação seria refeita de baixo para cima, ao contrário da tendência a que agora está sendo arrastada pela subordinação aos processos de globalização”.
Santos também vê na cultura popular uma ferramenta poderosa para se atingir essa outra globalização. Ao contrário da cultura de massa, que cria uma simbologia fixa que vem de cima e está sempre morrendo, podendo, “já ser visto como cadáver antes do seu nascimento”, “os símbolos ‘de baixo’, produtos da cultura popular, são portadores da verdade da existência e reveladores do próprio movimento de sociedade”.
Em suma, Por uma outra globalização é uma obra densa, que traz discussões riquíssimas e ainda urgentes. Chega a impressionar o tanto que Milton Santos põe sob a mesa em tão poucas páginas. Sobretudo, pela maneira como faz: nada raso. Suas preocupações, legítimas, não se esgotam na obra. Pelo contrário, elas se abrem, convidando ao debate. Sem dúvida, um pensador que ainda hoje, mais de vinte anos após a sua partida, continua colaborando para que encontremos uma outra maneira de viver, fazendo jus a algo que escreveu: “o homem, cada homem, é afinal definido pela soma dos possíveis que lhe cabem, mas também pela soma dos seus impossíveis”. Imprescindível.
Uma resposta
Sensacional. O livro e a resenha. 🙂
Colocando já na minha lista de futuras leituras.