Acredito que uma das analogias mais bonitas para a escrita é aquela que a compara ao fazer da costura. Em vez de linhas, tecer palavras. Coisa com a qual – em ambos os casos – precisa ser feita com cuidado, e por que não, carinho (mas às vezes, ódio). E com esmero, chegamos à beleza do boteh, à vivacidade colorida das capulanas e à força que nos desloca da literatura. Assim como se une linha com linha, ponto a ponto, entrelaçando até dar forma, se coloca palavra atrás de palavra – como diria Neil Gaiman –, às vezes chocando uma à outra, buscando a fruição, também a fim de alcançar a forma. Isso quando o labor da escritura não consegue o que se pretende com apenas um vocábulo. Alinhavar (Urutau), livro de poemas de Thaís Chagas, já traz tudo isso em seu título, nos indicando que em sua poesia não há pontas soltas, mas também não há esgotamento em si: é só o início do porvir, nos lembrando também que no princípio era o verbo.
Além de nomear o projeto, Alinhavar é também título do primeiro poema da obra, reforçando essa ideia de começo. E se o significado do verbo é um costurar rápido, de maneira provisória, a pontos largos, como um esboço para a costura definitiva, o poema de Thaís nos traz outra perspectiva: vemos como no ir e vir, o sonho rascunhado por outros em nossas infâncias, não raro é cosido doutra forma, por vezes trazendo resultados ao avesso: a militância pela verticalidade deságua em alguém que acredita no que é horizontal; a batalha pela postura é vencida por uma mulher sem moldes que, enfim, encontra a boniteza sem ironia.
Do poema primeiro, novos galhos vão surgindo e florescendo. Há uma ambientação que circunda todos os poemas, ainda que seus temas se difiram. Óbvio, os signos tecelões ajudam a criar essa sensação – e talvez até sejam pistas para que nos atentemos a essa unidade –, mas falamos da ordem das imagens que Thaís cria. Há em seus versos uma insurgência quase velada, uma inquietude. Por vezes, a revolta parece inevitável, mas ela a guarda, e a transforma em alfinetes que deixa espalhados por aí, e quando menos esperamos, eles nos perfuram. Isso tudo enquanto a consciência vai mostrando o corpo a cada palavra tecida.
Thaís é malandra. Ela faz de sua poesia um jogo de esconde-esconde. A cada releitura, algo novo se revela sob os fios bem trançados de seus versos. Versos livres, é importante frisar. Porque se na mão de outros poetas eles podem significar liberdades apenas formais, nas mãos de Thaís eles ganham contornos mais literais, pois é por meio deles que o não dito é dito, como se ela, ao se desnudar, virasse para nós e falasse, olha aqui, eu posso fazer o que eu quiser, nos provocando, você tem o necessário para me decifrar?
Poemas como “Poliéster” têm essa qualidade. Imagens mais explícitas vão de encontro à imagens subjetivas. O procedimento é clássico: somos deslocados como o chacoalhar de um trem que corre rápido faz com os corpos que o atravessa e mal temos tempo para nos recompor. “Tenho uma dificuldade irremediável / de manter contato social”, diz o sujeito poético. Compreendemos. E o faríamos mesmo que a violência não houvesse sido posta diante de si ainda em desejo, pois “tem dias que não importa o santo / o corpo não comporta tanto inferno”.
Já poemas como “Tear” trazem em si versos que rasgam a gente como a tesoura corta um tecido. Somos expostos ao mesmo tempo em que esse se desvela. O ritmo nos conduz tão habilmente pela vulnerabilidade vacilante até que levamos o golpe. E aí só nos resta a mudez e o vazio de não saber o que fazer.
Contudo, há na superfície dos poemas de Alinhavar assuntos que são mais facilmente tangíveis. Questões para as quais Thaís nos chama a atenção à maneira dos bons poetas: nos desafiando. E brincando a partir do projeto estético que ela nos propõe, somos jogados diante de tais tópicos. Com isso, em meio a novelos, fechos-éclair e caixas de linhas, temos o trabalho precarizado, a identidade racial e alguns problemas que atingem diretamente as mulheres sendo discutidos. A arte é política e Thaís não se esquiva disso. É o que vemos em poemas como “Branco”, no qual aquilo que sabemos bem é expresso com tanto primor, “este é um espaço que está sempre cheio de si”, e em “Gruta”, no qual a precisão de versos como “você não precisa deste poema para ir até o guarda-roupa e separar o que vestir para o trabalho amanhã” e “assim pereceremos à tua memória tão soterrada quanto o ouvir vozes do chão da fábrica” soa tão bruta.
Como muito bem traduz Aline Alves, “na contradição do verso livre há o grito sufocado, dos tempos em que a liberdade está extinta. Mas, mesmo sufocado, grito é grito. Não há poesia que não seja insurgência. Os versos de Thaís gravam em nós, que somos a matéria viva do presente do que não passou, não apenas tudo isso que não aceitamos, mas também o diálogo nada sufocado entre nós que não nos conformamos”. No nervo.
Thaís é insurgente, por isso também é poeta. E isso fica muito claro em Alinhavar, trabalho visceral e de apuro estético. Mas não só, pois há muita elegância na maneira como ela compõe seus versos. Mesmo esses sendo embebidos no inconformismo, que é fruto da leitura crítica e profunda que a poeta faz da vida que acontece ao seu redor. A poesia de Thaís Chagas também nos faz lembrar o que disse um certo senhor francês, pois é um belo exemplo do porquê amamos tanto esse negócio que a gente faz com linguagem: ela nos fere tanto quanto nos seduz.
P.s.: Thaís Chagas também é uma tradutora de mão cheia. Recomendamos com fervor o excelente trabalho que ela vem fazendo ao traduzir os poemas de Forough Farrokhzad direto do persa. Você pode lê-los na Escamandro, na Ponte Outras e na Felisberta.