Resenha “Como É”- Samuel Beckett

Por Arsenio Meira

“É quando a vida vase/ É quando como quase/ Ou não, quem sabe…” – Paulo Leminski

“Como é” destaca-se como uma das experiências mais ousadas de Beckett, no que concerne a violentar a linguagem até limites improváveis. Algumas pessoas que conheço acharam este livro esquizofrênico. Uma conhecida falou-me que doou o romance para a biblioteca publica. Só encontrei uma opinião positiva, ainda que moderada, a respeito tão somente deste romance, que nem sei se romance é. À falta de um nome, vai romance mesmo.

Para apresentar uma fábula sobre um tipo de existência que perdeu tanto sua forma quanto seu princípio e na qual a vida não mais progride, Beckett destrói tanto a forma quanto o princípio até então característicos das fábulas: agora a fábula destruída, a fábula que não mais segue adiante, torna-se a representação adequada da vida estagnada; sua parábola sem significado sobre o homem ocupa o lugar da parábola do homem insignificante. 

Por meio de uma escrita deficiente, amputada, mutilada, Beckett nos leva à evidência do esgotamento; ao engodo por trás das certezas:ao inóspito por trás do apreensível. Sua estrutura inusitada o afasta em absoluto de quaisquer modelos romanescos que se nos possam acudir à memória: não há pontos, parágrafos, sinais, maiúsculas ou qualquer coisa que lembre uma utilização conveniente e compreensível da língua. Há apenas fragmentos. Amontoados de palavras que se seguem num ritmo frenético, denunciando a falência de uma linguagem que se descobre incapaz de ir além, de atribuir significados últimos e duradouros, de traduzir o mundo e trazer conforto. Há, em sua prosa corrosiva e subversiva, a contínua impossibilidade de comunicação. 

Ao som da reverberação deste caos esbravejante, que se repete e renova a cada linha tecida pelo tormentoso pai de Godot, a experiência com a linguagem é levada por Beckett a seus limites mais ríspidos. Um soco na cara, na lata, sem chance de reação. Em “Como é”, Beckett fez seu maior desafio ao rigor da convenção: não ofereceu história alguma, e assim o fez, creio, por entender que, naquela altura do campeonato, o ser humano já estava numa baita fria: eliminado da História, e desprovido de qualquer caminho.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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