Escrito originalmente em 1959, A assombração da Casa da Colina (publicado em 2021 no Brasil pela Alfaguara, com tradução de Débora Landsberg) é o quinto romance de Shirley Jackson. A princípio, parece ser um livro de terror em que a autora atualiza a literatura gótica de castelos mal-assombrados, retirando toda a verborragia (no melhor dos sentidos) dos enormes romances clássicos dos séculos XVIII e XIX — sendo The Mysteries of Udolpho, escrito por Ann Radcliffe em 1794 um dos principais romances do gênero gótico —, nos brindando com um clássico absoluto com menos de 200 páginas, onde cada palavra, cada personagem, cada diálogo e cada sequência de sustos está onde deveria estar.
Um cientista aficionado pelo sobrenatural chamado John Montague decide alugar uma mansão mal-assombrada com a intenção de contratar várias pessoas que tivessem presenciado algum tipo de atividade paranormal durante a vida para passar uma temporada no local, com a finalidade de anotar e estudar todas as possíveis manifestações, e futuramente, usar a experiência para publicar seu livro sobre as causas e consequências de transtornos psíquicos em locais considerados assombrados. Após contatar uma dúzia de pessoas, apenas duas decidem aceitar o convite: uma delas é Eleanor Vance, uma mulher de 32 anos que passou a maior parte de sua vida cuidando de sua mãe enferma. Após a morte da mãe, e sofrendo com a falta literal de vida, abandona o quarto ocupado na casa da irmã casada e parte em direção à mansão. Eleanor pode ser considerada uma mulher que passa por dúvidas acerca de sua sexualidade, principalmente após se ver dividindo o quarto da mansão com Theodora, uma artista boêmia claramente lésbica — mas que no livro é descrita como uma mulher que havia passado por uma briga violenta com a “amiga” com quem dividia o apartamento. Para não restar dúvidas acerca da sexualidade de Theodora, Shirley Jackson não esconde que ela só aceita o convite de Montague porque a relação com sua “amiga” está passando por problemas, e elas decidem usar esse tempo afastadas para repensar a relação.
Quando criança, Eleanor teve sua casa atacada por pedras durante vários dias seguidos, porém durante o romance começamos a questionar se ela possui poderes telecinéticos e se era ela quem movia as pedras que atacaram sua casa na infância. Já Theodora possui o dom de adivinhar cartas, e segundo Montague, esse simples detalhe foi o que decidiu sua presença na mansão. A terceira pessoa a ser chamada por Montague é Luke, um jovem-problema, ladrão e mulherengo, que apesar de não ter nenhum poder paranormal, está na casa a pedido de sua tia como condição única para alugar a mansão a Montague. Outros personagens importantes são os empregados da casa, os Dudley. A senhora Dudley é a empregada/cozinheira, e seu marido, o senhor Dudley, é o jardineiro responsável pela mansão. Um paradoxo ambulante, o casal funciona como alívio cômico apesar de ser um arquétipo daqueles clássicos personagens assustadores de romances de terror, aqueles que geralmente aparecem em um corredor escuro portando candelabros diante de seus rostos carrancudos, ou que nos filmes aparecem acompanhados do clássico jump scare.
A princípio A assombração da Casa da Colina era um livro de terror, porque fica evidente que Shirley Jackson está muito mais interessada em usar a ideia de uma casa mal-assombrada como uma analogia sobre a repressão sexual feminina, ou ainda, como aquelas mulheres, por causa de sua sexualidade, eram vistas como inaptas para o que era considerado normal na época: incapazes de fazer parte do American Dream (uma vida de submissão, heterossexualidade e maternidade compulsória). Fica claro que se não existissem passagens de terror, ainda sim, o livro seria bastante assustador se analisado através de um ponto de vista feminino. Eleanor, por exemplo, constantemente usa roupas vermelhas, indicando não apenas seu estado sentimental em relação à Theodora, como também indicando que sua vida pode estar em perigo — devido à sua orientação sexual — em sua vida pública. Ela está tão preocupada em performar a feminilidade exigida na época que até mesmo o ato de comprar suas primeiras calças (aos 32 anos) é visto por ela como se estivesse cometendo um crime. Vale lembrar que até algumas décadas antes, mulheres poderiam acabar presas se usassem calças em locais públicos.
A autora passa várias páginas preparando, construindo e salpicando o romance com algumas pequenas sequências assustadoras — sempre, é preciso dizer, misturadas com tiradas bem humoradas (de nervosismo) dos personagens —, e em determinado momento, finalmente, ela decide situar o leitor a respeito de onde, como e por que a mansão é mal-assombrada. Como não poderia deixar de ser, a história é devastadora: a casa havia sido construída há 80 anos por Hugh Crain com a intenção de ser o lar de sua família, bem como das próximas gerações, porém no dia da mudança, sua esposa morreu minutos antes de ver a casa pela primeira vez, num acidente com sua carruagem. Crain ficou evidentemente devastado, mas resolveu criar suas duas filhas na casa. Casou-se mais duas vezes, porém sua segunda esposa morreu em uma queda misteriosa, e a terceira morreu enquanto viajava. Quando Crain morreu, a casa passou a ser propriedade das duas irmãs, que brigavam constantemente pelo imóvel. Em determinado momento, a irmã mais velha, solteirona — enquanto mais nova já estava casada — passou a morar na mansão e eventualmente trouxe uma garota do vilarejo para morar com ela — ecos da “amiga” de Theodora? —, e quando essa irmã mais velha morreu de pneumonia, a casa foi deixada de herança para essa “amiga”, o que gerou atritos com a irmã caçula — que na verdade representa a sociedade conservadora da época, que não via com bons olhos duas mulheres jovens vivendo sozinhas. Eventualmente, a amiga passou a sofrer com os acontecimentos paranormais do lugar, e acabou se enforcando na pequena torre da mansão. Durante alguns anos a casa passou a ser de alguns primos vivos da família, que tentavam sem sucesso alugá-la, até que finalmente, no presente, Montague aparece com Eleanor, Theodora e Luke.
Acho interessante que Shirley Jackson não esteja interessada em nos levar diretamente aos sustos. Pelo contrário, prepara o leitor enquanto desenvolve a relação entre cada um dos personagens, assim como insere informações pontuais sobre o passado de cada um deles, para que nós possamos criar vínculos com quem mais dialogar internamente conosco. Isso fica evidente na quantidade de páginas que ela destina para cada personagem, principalmente Eleanor, afinal ela é a protagonista do romance. Interessante também é que apesar do livro ser narrado em terceira pessoa, a maioria dos acontecimentos são vistos através do ponto de vista de Eleanor, e como sabemos desde o início que ela é uma pessoa com a mente frágil, carente de carinho e contato humano, não podemos confiar em tudo que ela diz, faz ou descreve durante sua estadia na mansão. Isso é ótimo para a narrativa, pois gera um conflito nos leitores, visto que em determinado momento começamos a duvidar se os acontecimentos sobrenaturais da casa estão realmente acontecendo, ou se tudo não passa da imaginação da protagonista, além de nos importarmos com sua vida na mansão, que, aliás, pode ser considerada a real protagonista do romance, com suas portas que se fecham sozinhas, ventos e corredores gélidos em locais onde não existem portas ou janelas, torres prestes a despencar, árvores em formas assustadoras que arranham as paredes pelo lado de fora, quartos que quando ocupados por Eleanor aparecem pintados de sangue sem nenhuma explicação — lesbofobia de algum homem, ou de Theodora, de Eleanor, ou mesmo da casa?
O romance ganha ainda mais importância se analisarmos a carreira de Shirley Jackson no contexto da cena literária dos gêneros terror, gótico e horror da época — que como sabemos, era dominado por homens brancos. Antirracista e casada com um judeu, a autora era acostumada a abordar preconceitos relacionados à raça e à sexualidade nas entrelinhas de seus romances, e aqui, a mensagem final, aquela que Jackson deixou não tão escondida nas entrelinhas, foi que para aquelas mulheres, o verdadeiro terror era estar destinada a uma vida de adequação às normas de gênero e à família nuclear quando se era claramente lésbica, ou, no caso de Eleanor, questionadora da binariedade de sua sexualidade. À época não existia lugar em uma família tradicional para mulheres como elas. Por último, quem precisa de fantasmas e mansões mal-assombradas quando o que assusta na verdade, é a dura possibilidade de viver um futuro onde não nos será permitido ser quem realmente somos, sozinhos, sem amor?
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