“Só Nós”: Claudia Rankine aborda a vivência em uma sociedade historicamente antinegra

“A branquitude quer o tipo de progresso que reflete o que ela valoriza, um reflexo de si mesma.” – Claudia Rankine

Belíssimas fotografias entre ensaios e poemas, um sistema de anotações não convencional, checagens de fatos, citações a astros da música pop — é impossível não rir quando a autora cita displicentemente a famosa frase “becky with the good hair” —, e experimentalismo literário. Em Só Nós: Uma Conversa Americana, publicado pela Todavia (com tradução de Stephanie Borges), Claudia Rankine analisa a branquitude em seu grupo de amigos intelectuais e até mesmo em estranhos pela rua. Diferente — e ao mesmo tempo, estranhamente tão parecido com Cidadã: uma Lírica AmericanaSó Nós vem carregado de uma ironia/falta de paciência recorrente devido à aleatoriedade de sua abordagem ao questionar o privilégio branco de pessoas desconhecidas em filas de aeroporto, metrô, etc. Mas além da ironia e do humor (aquele que nos faz rir de nervoso), o que temos aqui parece ser uma tentativa da autora de descobrir como — ou se — as pessoas brancas costumam pensar em questões raciais em suas casas, com suas famílias, ou até mesmo admitir sua parcela de culpa quando presenciam ou cometem atos corriqueiros e sutis de racismo.

Assim como em Cidadã, o racismo denunciado aqui não é o escancarado, mas sim aquele não dito, presente no nosso dia a dia, no olhar do branco que não se conforma em encontrar negros, marrons ou indígenas na sua tão exclusiva primeira classe. Rankine se apropria do termo “morte social” cunhado por Orlando Patterson, — e de certa forma ressignificado por Frank Wilderson III em Afropessimismo — ao analisar o não lugar do cidadão negro norte-americano. 

“É difícil existir e aceitar minha falta de existência” – Claudia Rankine

Rankine fornece dados alarmantes — mas não surpreendentes — sobre o tratamento recebido por adolescentes negros pelos professores racistas. Segundo pesquisa, “alunos negros correspondiam a 15.5% de todos os alunos da rede pública, mas representavam cerca de 39% dos alunos suspensos da escola” (p. 272). Detalhe que dialoga com o que James Baldwin falava constantemente em seus livros acerca da educação norte-americana. De acordo com o autor, “qualquer negro que leve ao pé da letra a formação que recebe na escola irá ficar praticamente incapacitado para viver nessa democracia.” Paradoxalmente, homens negros são historicamente infantilizados, tratados como inferiores, e adolescentes negros são tratados como mais velhos, e assim, acabam presos e julgados como adultos, sendo condenados à prisão perpétua, ou, pior, acabam mortos simplesmente por baterem com a descrição. 

Ainda sobre disparidades, a autora aponta um estudo que demonstra bem como o sistema norte-americano é favorável ao cidadão branco. A saber, 64% dos políticos eleitos são homens brancos, a discrepância se torna ainda maior quando sabemos que eles são apenas 31% da população dos Estados Unidos. É quase como um espelho invertido que dialoga com o caminho da morte feito por jovens negros que morriam em batalhas desde a Guerra Civil Americana. Para motivo de comparação, na Guerra do Vietnã, 25% dos soldados eram negros, sendo que eles eram apenas 13% da população norte-americana, mas os corpos negros representavam cerca de 26% das mortes. Ou seja, homens negros encaravam a guerra para fugir do racismo e dos linchamentos norte-americanos, apenas para enfrentar o racismo e morrer em nome de um país que não os considerava humanos.

Também é interessante o momento em que a autora passa a desconstruir a noção de poder aquisitivo, principalmente como o poder aquisitivo dos brancos parece funcionar — para alguns negros — como um portal para poder experimentar, ou ao menos chegar mais perto de usufruir da dominância branca. É o oprimido virando o opressor? O leitor pode e deve usar suas próprias experiências para entender o pensamento da autora, mas a princípio, a ideia central parece ser mesmo um possível constrangimento de negros bem-sucedidos ao ver outros negros na pobreza, porque conforme o pensamento da autora, eles, os negros ricos, “veem a vida através das lentes julgadoras da discriminação branca.” (p. 111). Ela ainda parece sugerir que esse comportamento está intrinsecamente ligado ao medo dos ricos de ver sua negritude ser manchada pela população negra carente.

O sistema de cotas também é abordado quando a autora descreve um encontro com um estranho que insiste em dizer que seu filho perdeu uma vaga em uma universidade conceituada porque “não apelou para a diversidade”. Esse pensamento é o clichê do homem branco que é condicionado desde cedo, muitas vezes pelos próprios pais, a pensar que tudo é seu por direito, e quando a profecia não se concretiza, esse grupo se sente injustiçado. Citando Marcelo D2: A culpa é de quem? Rankine responde: da sociedade e da mídia que faz pessoas brancas serem “ignorantes das violências cometidas contra pessoas de cor, seja pela polícia, pela exclusão, pela vigilância ou negligência.” (p. 67)

O ponto alto, na minha opinião, acontece quando a autora aborda — ou tenta entender, a partir de uma simples pergunta sobre estética — a ligação entre a busca da aceitação (própria e alheia) de mulheres negras com seu próprio cabelo, e por que é tão comum o número de mulheres negras artificialmente loiras. É uma questão puramente estética? Não. Como sabemos, a mulher loira e branca foi construída (pela mídia, indústria dos cosméticos, etc.) como um sinônimo de perfeição, de sucesso, e muitas vezes é entendida como uma espécie de ascensão social. A autora argumenta que às mulheres de cabelos loiros e lisos é prometido o mundo. Logo, “loiras negras acreditam que ela (a cor loira) lhes permite serem vistas, talvez serem vistas pela primeira vez como humanas, joviais, bonitas […] tragicamente pelos seus próprios olhos.” (p. 285). Em determinado momento, Rankine pergunta: Ficar loira é uma maneira de acessar ou adquirir a branquitude como propriedade? 

Em última análise, alguns livros recentes que foram e são sucessos de vendas abordam o racismo de forma pensada milimetricamente para o público branco, e esses livros são marcados pelo didatismo mastigado, parecendo pequenos manuais para que os brancos que se consideram progressistas e que querem deixar claro que não são racistas possam se sentir melhores consigo mesmos. Isso não acontece aqui. Se o leitor desavisado começar a ler Só Nós: Uma Conversa Americana esperando esse tipo de conteúdo, ele sairá frustrado com a experiência, pois Claudia Rankine utiliza uma abordagem pautada pelo caos e pelo experimentalismo em forma de um longo e híbrido estudo contendo ensaios, pensamentos, memórias e poemas que abordam a vivência do cidadão negro norte-americano em uma sociedade historicamente antinegra. 


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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