Sobre ‘Ao lado e à margem do que sentes por mim’, de Ana Maria Gonçalves e o alvorecer literário

Ao lado e à margem do que sentes por mim

Quem me conhece sabe que eu tenho um interesse enorme por estreias literárias. Sinto um certo fascínio em descobrir como foi o começo de gente que com o tempo veio a se tornar referência na literatura. Mesmo que eu nunca tenha lido outra coisa dos autores para comparar, gosto de saber como foi o início de suas jornadas. Quando Zadie Smith soltou seus Dentes brancos no mundo, fez um barulho enorme, sendo considerada uma das maiores promessas da literatura contemporânea. O primeiro romance de Toni Morrison foi nada mais, nada menos do que O olho mais azul. E recentemente, aqui no Brasil, Geovani Martins colocou seu nome na boca de todos com o ótimo O sol na cabeça. Outros autores, no entanto, tiveram estreias mais modestas e só com o tempo viriam a se tornar quem são.

Isto posto, um debute que eu sempre quis ler foi o de Ana Maria Gonçalves, com seu Ao lado e à margem do que sentes por mim. Ana, como se ainda fosse necessário apresentá-la, é autora de Um defeito de cor, um dos romances mais celebrados da literatura brasileira nos últimos anos. E digo mais: todo mundo que eu conheço e já leu esse calhamaço costuma cravar: Um defeito de cor não é só um livro excelente como é um dos mais importantes — se não for o mais importante! — da literatura brasileira do século XXI. A primeira pessoa a me dizer isso foi o professor, e meu amigo, Brayan Carvalho. E ele não está sozinho. Millôr Fernandes não só concorda, como apadrinhou Ana. E ainda escreveu em seu blog que o livro está entre os dez mais importantes que já leu em nossa língua. E ainda mandou ninguém mais ninguém menos do que Saramago se cuidar. Ou seja, não é pouca coisa.

A questão era a seguinte, achar Ao lado e à margem do que sentes por mim por aí se tornou uma das tarefas mais difíceis da vida de qualquer leitor brasileiro. O livro, escrito por Ana Maria quando ela decidiu largar tudo e partir para a Ilha de Itaparica, onde o escreveu, foi publicado de forma independente pela autora lá em 2002, quando a mesma era bem pouco conhecida. Apenas mil cópias foram lançadas e não existe estante virtual que o tenha. Okay, okay, a autora disponibilizou boa parte da obra em seu antigo blog, mas convenhamos, não é mesma coisa. Entretanto, 2018 tem sido um ano muito arteiro, aprontando várias para o meu lado. E numa dessas, em mais uma obra do acaso (e que para muitos pode ser um caso de serendipidade), fez com que eu ficasse sabendo por meio da minha querida amiga, a escritora Marilia Pereira, que a biblioteca José de Alencar, que fica na Faculdade de Letras da UFRJ, tinha uma dessas poucas cópias. Não perdi tempo! Fui ao primeiro dia de aula do semestre só por causa desse livro (risos).

Ao lado e à margem do que sentes por mim é um romance intimista e bastante pessoal. E embora não dê para saber o que é ficcional ou não na obra, a gente sente um quê autobiográfico ao longo de suas 310 páginas. O nome da protagonista, detalhes de sua vida e o local onde se passa a história não me deixam mentir. No romance, Ana M. Gonçalves conta a história de uma mulher chamada Ana, que larga tudo em São Paulo e se muda para uma pequena ilha na Bahia a fim de se redescobrir enquanto sonha com o amor

Ana Maria Gonçalves

A minha intenção aqui não é a de escrever uma crítica literária e sim a de tentar organizar alguns pensamentos que tive após terminar o livro e até então estavam soltos. Sobretudo, acerca do quanto podemos evoluir naquilo que fazemos. Para tanto, gostaria de dizer algumas palavras sobre o romance, mas de forma bem impressionista mesmo, pois a leitura de Ao lado e à margem… foi um tanto singular para mim.

Eu estava muito curioso para saber como havia se saído em sua primeira empreitada literária a escritora que deu vida a Um defeito de cor. É muito interessante, principalmente para quem, assim como eu, se enfiou nessa coisa de escrever, fazer uma leitura mais atenciosa, mais de perto, de um texto. Ainda mais quando quem o escreveu é alguém que a gente admira tanto. Há alguns meses eu li um texto da Ana Maria para o Intercept Brasil chamado Na polêmica sobre turbantes, é a branquitude que não quer assumir seu racismo. E como essa mulher escreve! Além de um ótimo ritmo, ela é muito afiada em suas escolhas. Em alguns momentos, o texto parece nos cortar que nem navalha. No que tangia a qualidade de sua escrita, eu só conseguia pensar em uma coisa: “o que eu preciso fazer para ficar bom desse jeito?” Sério, me digam o que tenho que beber ou quem eu preciso sacrificar que eu faço! Logo, quando pus as mãos em seu primeiro livro, foi difícil segurar a expectativa. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que Ana nem sempre foi esse monstro todo? Que ela, em algum momento, também teve traços de gente ordinária como eu?

 
Uns e Outros: contos espelhados

Ao lado e à margem… não é um livro ruim. Ele guarda em si ótimos momentos. Quando Ana escreve sobre Itaparica, seus costumes e cultura, ela o faz de forma bastante rica. Ficamos com aquela vontade de conhecer mais daquele lugar e do seu povo. Além disso, há um personagem muito bom no livro, o Zé. Sempre que ele se faz presente, contando suas histórias ou voando com seus devaneios, a gente quer ouvi-lo sem parar. Sem contar que Ana já escrevia muito bem nessa época. Há trechos lindíssimos, nos quais ela faz de sua prosa poesia. Entretanto, a Ana de Ao lado e à margem… não é a mesma Ana de Negrinha! Negrinha! Negrinha!, conto assombroso, inspirado em Negrinha, de Monteiro Lobato, presente na coletânea Uns e outros: contos espelhados. E não há problema nenhum nisso. Até mesmo porque a gente percebe que Ao lado e à margem… é um livro que, apesar de todo talento, é de alguém que estava começando e que resolvera aprender na prática — e à vista de todos! — o que é escrever um romance. Para tentar ilustrar o que eu quero dizer, vou usar o exemplo de algo recorrente na história: a questão da protagonista com o amor. Não sei se foi algo pessoal, coisa de gosto e tal, mas boa parte das vezes que esse era o foco do texto, eu dava aquela desanimada. Além de repetitivo, me soava como aquelas histórias de amor ‘água com açúcar’ e que por vezes forçam um pouco a barra. Muito diferente da maneira como a autora construiu os relacionamentos de Kehinde em sua obra mais famosa. Em Um Defeito de cor, Ana Maria não dá ponto sem nó e consegue nos entregar situações muito mais naturais e orgânicas. Sem contar que também o fez a partir de uma perspectiva muito mais madura. Mas reitero: pode ter sido coisa particular. Talvez você que teve paciência de me ler até aqui não concorde caso ainda leia ou já tenha lido o livro. Há essa possibilidade. Afinal, como sempre digo, cada leitor e cada leitura é diferente. E é aí que mora a magia desse negócio todo, não é mesmo?

Ao lado e à margem do que sentes por mim é um começo. O começo de Ana. E se ela nunca o tivesse escrito, talvez hoje não tivéssemos Um defeito de cor e a Ana Maria Gonçalves que a gente conhece e tanto precisa. Inclusive, isso me faz lembrar de algo que Parul Sehgal escreveu sobre Machado de Assis em um texto para o The New York Times. Ao falar da evolução da escrita de Machado, a autora disse algo que eu achei muito bonito: “mas em 1879, seu estilo mudou — ou melhor, ele chegou”. E talvez tenha sido a mesma coisa que aconteceu à Ana. Em 2006 seu estilo chegou, mas antes disso, ela precisou escrever Ao lado e à margem… e passar por todo o processo pelo qual passou, e já é de conhecimento público, para que Um defeito de cor existisse. E assim como lapidamos um texto, tal qual se lapida um diamante, o escritor também tem o poder de lapidar a si mesmo. Se não me engano, foi a Zadie Smith que disse em algum lugar que a literatura é a única forma de arte na qual nós realmente podemos nos tornar melhores sem que tivéssemos a necessidade de ter vivido a vida inteira a fazê-la. E embora essa seja uma discussão mais profunda e cheia de nuances do que essa afirmação pode dar conta, concordo com ela. E se nem Machado era o Machado em seu alvorecer literário, quem sou eu para cobrar da Ana que ela já fosse a Ana em seu primeiro livro? Como alguém que está aprendendo a escrever, tenho em Ao lado e à margem do que sentes por mim uma tremenda aula. Aula essa que me ensina que quando se trata de literatura, é só com bastante empenho e paciência que se chega a algum lugar. Ou seja, é escrevendo, reescrevendo e tendo em mente que é tentando e errando que se aprende alguma coisa. E que além disso, é necessário terminar aquilo que começamos para que possamos seguir em frente levando conosco tudo o que aprendemos durante esse processo. Como um amante da literatura, tenho em Ao lado e à margem do que sentes por mim o privilégio de saber como foi o nascimento literário da autora de um provável cânone desta arte. No final das contas, eu só tenho a agradecer. Obrigado por tudo, Ana.

4 respostas

    1. Interessante a resenha sobre a obra de Ana Maria Magalhães. Também lí os dois trabalhos. Digo trabalhos porque livro para mim foi só mesmo Um Defeito de Cor. Alguém crítico afirmou que poderia ser um pouco menor, umas 300 páginas. Concordo com a opinião. No entanto isso não reduz a qualidade do seu trabalho. Gostei muito, mas não sei se posso coloca-lo entre os dez da ficção brasileiro, afinal, tem um grupo de nomeada (Castro Alves, Sousandrade, Machado, Érico Veríssimo, Velho Graça/Ramos, Osman Lins/Avalovara, João G. Rosa – autor, no modo de sentir, da maior obra ficcional da linha brasileira), Josué Montelo/Os tambores de S. Luis etc. Enfim, não aparece todo dia – ao mesmo ano – uma escritora com o talento de Ana Maria Gonçalves.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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