Sobre os Racionais MC’s e a Unicamp

Sobrevivendo no Inferno
Quando a literatura começou a se tornar cada vez mais presente em minha vida, redobrar a atenção que eu dava para as letras das músicas que eu ouvia foi algo que aconteceu de forma bastante natural. Posso até dizer que fiquei mais exigente. Não que eu tenha parado de ouvir músicas cujas letras são mais simples ou que não possuam alguma profundidade. O que aconteceu foi que eu comecei a dar mais valor à parte lírica da coisa. O que eu não esperava é que esse fato pudesse vir a ser um dos motivos para que eu me aproximasse de um gênero musical para o qual eu nunca dera muita ideia até então: o rap.

Em um momento no qual eu começara a questionar o meu lugar, a realidade na qual eu vivo e a minha identidade, o rap entrou na minha vida como uma espécie de rolo compressor. Ao jogar várias verdades na minha cara, além de me mostrar outras vivências e pontos de vista, o rap me fez acordar e me deu muito o que pensar. O que nunca teria acontecido se o seu texto não fosse tão bom quanto é. Eu aprendi e continuo aprendendo muito com este estilo musical.
 
Isto posto, seria impossível eu não ficar feliz com a escolha que a Unicamp fez em tornar o magistral “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais MC’s, uma das leituras obrigatórias para o seu vestibular de 2020. Este disco, lançado em 1997, é mais do que “apenas” um dos maiores álbuns da música brasileira de todos os tempos. É também uma obra de valor literário inquestionável.
 
Assim como Jorge Amado em “Capitães da Areia” e Anna Muylaert em “Que Horas Ela Volta?”, Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue fizeram em “Sobrevivendo no Inferno” um dos registros sociais mais importantes da nossa história. Este disco é um retrato visceral de uma realidade que muitos brasileiros desconhecem — ou se negam a enxergar. E apesar de ser uma obra lançada em meados dos anos noventa, infelizmente ainda se faz bastante atual. O que é ser negro no Brasil? O que é ser periférico aqui? O nosso sistema prisional funciona? Só é pobre quem quer? Bem, é possível encontrar algumas respostas no disco.
 
Com uma narrativa poderosa e uma coragem avassaladora, os Racionais denunciaram toda a opressão que recai sobre um povo inteiro. Mais do que isso, eles se tornaram uma voz para todos aqueles que quase nunca eram ouvidos. E inspiraram muitos desses a também se tornarem uma voz. Em “Sobrevivendo no Inferno”, os Racionais expuseram algumas das maiores feridas do nosso país. Feridas essas que ainda se encontram abertas e necessitam urgentemente de uma cura. A Unicamp acertou em cheio em reconhecer que não há ninguém melhor para contar uma história do que aqueles que vivem ou viveram essa história. E só não digo aqui que a universidade se mostra à frente do seu tempo por reconhecer a importância de uma obra como essa, porque isso já deveria ter acontecido há muito tempo. Neste ponto, mesmo que à frente de outras instituições, ainda o faz com demasiado atraso. É importantíssimo que a academia e todos aqueles que são tidos como a elite cultural do país parem de pirraça e reconheçam que todos os que eles tentam tratar como margem (Racionais MC’s, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, só para citar alguns nomes) também são valiosos. Até mais valiosos do que alguns dos que eles tanto defendem. E digo mais: a cada dia que passa, as pessoas tomam mais conhecimento disso. As coisas estão mudando.
                                          

3 respostas

  1. Ainda bem que não usou a expressão "a frente do seu tempo". Sempre que alguém usa essa expressão um historiador/historiadora morre e eu imagino que um dia serei eu a vitima hahaha Nada ocorre fora do tempo, essa escolha é fruto de nossas lutas, de nossas demandas, de nossa busca e sofrimento em busca de visibilidade e da possibilidade de justiça social. Uma pequena vitória no meio das muitas derrotas que colecionamos.

    Hoje eu tive um dia especialmente cansativo sabe, lembrei que faz 14 anos desde que alfabetizei alguém pela primeira vez, 14 anos de docência… Lembrar que "Os racionais" se tornaram leitura obrigatória me fez pensar: "Olha só, nem todas as batalhas resultaram em derrotas." rsrsrs….

  2. Boa noite, Pandora!

    Fico feliz com o seu comentário.

    Confesso que não conhecia esse estigma de historiadores com a expressão "à frente do seu tempo". Prometo ficar atento para não cometer esse crime com vocês daqui para frente.

    Espero que você esteja melhor e que o dia cansativo tenha ficado para trás. E parabéns pelos 14 anos de docência. Imagino que essa caminhada não deva ter sido fácil.

    Por fim, "nem todas as batalhas resultaram em derrotas". Mas não podemos abaixar a cabeça. Seguimos!

    Até mais!

  3. "É importantíssimo que a academia e todos aqueles que são tidos como a elite cultural do país parem de pirraça e reconheçam que todos os que eles tentam tratar como margem (Racionais MC’s, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, só para citar alguns nomes) também são valiosos. Até mais valiosos do que alguns dos que eles tanto defendem." Isso!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

R$ 5.829/mês 72%

Participe do Clube Impressões

Clube de leitura online que tem como proposta ler e suscitar discussões sobre obras de ficção que abordam assuntos como raça, gênero e classe, promovendo o pensamento crítico sobre a realidade de grupos minorizados.