A potência de “Sula”, de Toni Morrison

Sula foi o segundo romance da escritora norte-americana Toni Morrison, publicado em 1973 e  indicado ao prêmio National Book Award em 1975. Desde então, a escritora escreveu outros livros de sucesso, como o Song of Solomon (1975) e Amada (1987), que lhe renderam prêmios National Book Critics Circle Award e Pulitzer, respectivamente.

Em 1993, Toni Morrison foi a primeira escritora negra a receber o prêmio Nobel de Literatura, mas com Sula já é possível observarmos como sua potência literária é anterior a esse reconhecimento. O romance ainda era inédito aqui no Brasil, portanto, esta edição traduzida pela Débora Landsberg e lançada em 2021 pela Companhia das Letras, é mais que bem-vinda.

São três anos que separam Sula, de O olho mais azul, primeiro romance de Toni Morrison publicado em 1970. Em Sula, a autora não abandona sua sensibilidade política, mas mostra – àqueles que na época só sabiam mencionar essa parte – que sua obra, que começava a alcançar com Sula um espaço maior, tinha também muita força estética. É preciso relembrar o contexto histórico da literatura, se hoje temos muitas possibilidades dentro da ficção produzida por pessoas negras e por mulheres, foi porque escritoras como Toni Morrison abriram os caminhos. Eu sempre tive vontade de ler o Jazz que Toni Morrison publicou em 1992, mas devo dizer que comecei pelo Sula e foi uma excelente escolha.

A partir da relação de duas amigas, Nel Wright e Sula Peace, que crescem juntas em Medallion, Ohio, temos um romance que aborda a pressão da sociedade sobre o desejo feminino, focando nessas duas personagens que tomam caminhos opostos. Nel segue as expectativas e acomodações propostas pelo casamento, tornando-se o padrão da comunidade negra local, e Sula, que foge da cidade, também foge dos padrões e é vista por essa mesma comunidade como uma mulher maligna. Além de serem amigas, as duas estão ligadas por um segredo. Pronto, olha esse enredo, que potente.

Sula tem como início temporal o ano de 1919. O início do século XX foi marcado pelo fim da primeira guerra mundial e nessa década em que a narrativa começa, também foi o momento da popularização do Jazz. Além disso, um contexto histórico que é fortemente marcado no romance e transformado em linguagem, é a segregação racial dos Estados Unidos. É bastante notável como Toni Morrison evidencia as implicações na divisão dos espaços, como lugar de gente branca e lugar de gente negra. Esse contexto se manifesta em vários espaços como o trem, banheiros e o cemitério.

Imagem: Divulgação

Embora o romance siga uma linearidade, de 1919 até 1965, um dos pontos que achei mais interessante no livro foi a abertura narrada por alguém de fora, que faz uma descrição histórica do Fundão que é posterior à narrativa central do romance. O Fundão é um bairro negro, cenário da narrativa, que se desenvolve também com o passar dos anos. A mudança de ponto de vista da voz narrativa produz um efeito de leitura, de distância e aproximação. A princípio, entramos na narrativa com uma visão muito distanciada de alguém que observa o Fundão posteriormente e de longe, mas com o avançar dos capítulos a sensação é de que entramos em vivências muito íntimas tanto das personagens como do cotidiano do Fundão. Predominantemente, temos uma voz narrativa em 3ª pessoa, mas em alguns momentos temos alguns blocos de texto, que parecem narrados pela Nel. 

No capítulo 1920, conhecemos Nel Wright, uma menina que cresceu em uma família conservadora, com uma “mãe que se mostrou muito à altura da maternidade” (p. 31), é uma esposa que sabe manipular o marido e frequenta a igreja. Nel faz uma viagem com a mãe para New Orleans porque a avó estava doente. Ainda criança, apesar das dificuldades da viagem para o sul dos EUA com uma forte segregação racial, Nel adorou a viajar e isso trouxe a ela uma percepção de individualidade que a deixa com o desejo de um dia sair de Medallion, mas “Seria a última bem como a primeira vez que sairia de Medallion” (p. 41). Neste capítulo é possível perceber que essa personagem não conseguirá seguir com seus desejos, e isso já está anunciado desde o começo, quando sabemos que “Quaisquer entusiasmos que a pequena Nel demonstrasse eram aplacados pela mãe, de tal modo que levou a imaginação da filha à clandestinidade” (p. 31). Depois da viagem, Nel fica amiga de Sula, com quem ela nunca tinha brincado porque sua mãe dizia que a mãe de Sula é retinta. É perceptível, neste ponto do livro, como a segregação racial tem influência mesmo naquele bairro negro. Neste capítulo também vemos que a afinidade de Nel e Sula se dá pela diferença familiar. Nel mora em uma casa impecável e limpa, já Sula mora em uma casa que parece mais bagunçada, com uma mãe que parece mais livre e com uma avó que só tem uma perna.

Já no capítulo 1921, conhecemos Sula Peace, que dá título ao romance. A sequência dos capítulos nos mostra o contraste entre a educação mais conservadora que Nel recebe em casa e a educação mais livre de Sula. Esse capítulo é iniciado com uma breve narrativa sobre a avó dela, Eva, que tem um casamento insatisfatório e é abandonada pelo marido. Depois conhecemos Hannah, mãe de Sula e umas filhas de Eva. Hannah é uma personagem muito interessante porque é uma mulher muito livre, que tem relações sexuais com vários homens mas não gosta de dormir com eles, que não vinculava paixão às suas relações e não sente ciúmes. “Podia romper um casamento antes que se concretizasse — ela fazia amor com o recém-casado e lavava a louça da esposa, tudo numa tarde só. O que ela queria, depois que Rekus morreu, e o que conseguia obter na maioria dos casos, eram algum contato físico todos os dias” (p. 55).

Nenhum dado narrativo que Toni Morrison nos dá é supérfluo, porque todo o desenrolar das trajetórias de Nel e Sula ao longo do romance, parecem desdobramentos da educação que receberam. Além disso, tem dois conflitos que produzem os desenlaces no romance e nos fazem grudar na leitura: o segredo de adolescência de Nel e Sula e o fato de que quando Sula retorna para Medallion, bem  diferente do padrão local, ela e Nel têm um desentendimento. Todavia, não vou contar aqui para não estragar a surpresa. 

E é bastante significativo que o caminho de Sula, que tenta romper com os padrões, seja considerado ruim pela comunidade local. Sula é considerada um mau exemplo, talvez próximo do que sua mãe era. A narrativa como um todo se aproxima do contexto de caça às mulheres consideradas bruxas. Isso me interessa muito nesse romance: como os valores familiares são passados e transformados de uma geração para outra e como historicamente as mulheres não deixaram de serem perseguidas e punidas por tentarem seguir com seus desejos. Além disso, Sula, nos mostra como a individualidade da mulher é cerceada, inclusive por outras mulheres. A Nel não consegue realizar seu desejo de sair de Medallion. Ela se adequa ao contexto que está em volta dela. Também notamos como é forte o discurso sobre ser uma boa esposa e ser uma boa mãe. Sei que essa é uma pauta já muito debatida atualmente, mas, os padrões sociais resistem ao longo do tempo. Sula é uma obra excelente para discutir o papel da mulher na sociedade e como isso é transmitido pela nossa comunidade, pelas nossas mães, pelas nossas avós. A segregação racial é um dos cenários mais fortes do livro, mas o que parece estar ressaltado nessa obra são as questões de gênero. 

Me parece um grande mérito como Toni Morrison consegue transformar em ficção muitas questões das mulheres negras de sua época, que eram separadas, sustentavam os filhos e buscavam uma liberdade de ação, se considerando como a própria salvação para si mesmas. Conforme Morrison escreve no prefácio “O que isso poderia significar em 1969 que não significava na década de 1920? A imagem da mulher que era ao mesmo tempo invejada e vista com precaução me veio à mente” (p. 11). 

Sobre Sula, minha vontade é acabar de escrever essa crítica e começar a reler o livro. 2021 foi difícil mas teve lançamentos muito bons como esse! Torço para que 2022 também seja próspero!


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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