“Você frequentemente tinha habitués lá, também. Havia pessoas com quem você teve relações sexuais uma vez, pessoas com quem você se envolvia toda vez que as encontrava, e pessoas que você encontrava regularmente às dez horas da manhã de sábado. E se você gostasse delas, poderia manter esses relacionamentos por seis ou sete anos, sem nunca saber o sobrenome delas, que é o que as pessoas queriam.” – Samuel Delany
Times Square Red, Times Square Blue (ainda sem tradução no Brasil mesmo após quase 25 anos desde sua publicação original) é um livro de não ficção escrito pelo consagrado autor de ficção científica Samuel “Chip” Delany, conhecido mundialmente por obras como Babel-17, The Einstein Intersection, Hogg e Nova — que conta com belíssima edição em português publicada em 2023 pela editora Aleph.
Times Square Red, Times Square Blue é composto por dois ensaios em que Delany, homem negro e gay, usa sua experiência sexual e intelectual enquanto frequentador assíduo de casas de striptease e cinemas pornôs entre 1960 e 1990 para examinar a relação existente entre a vida sexual pública dos homens gays e bissexuais da classe trabalhadora e a gentrificação na cidade de Nova York, cuja devastadora remodelagem fora resultante de um enorme esforço dos políticos conservadores novaiorquinos para transformar a Times Square em um ambiente estereotipicamente heterosexual que seria pautado por uma marginalização das expressões não heteronormativas.
Sua principal linha de pensamento é a ideia de que as casas de swing, os cinemas pornôs, e demais locais onde era celebrado o sexo livre das amarras sociais seriam os verdadeiros responsáveis por facilitar uma conexão entre pessoas de diferentes classes sociais, visto que devido à ansiedade associada ao contato com classes inferiores e a perda dos “valores familiares”, dificilmente essas pessoas se relacionariam em outro contexto a não ser o sexual. Ou seja, o que ele está realmente dizendo é que por causa de “leis contra o atentado ao pudor”, possíveis relações intelectuais e duradouras, ainda que nascidas da atração carnal, estavam deixando de acontecer. Seu ponto de partida é o desastroso processo de transformação da Times Square em um ponto turístico — que na verdade, devido à gentrificação, acabou destruindo centenas de pequenas lojas, farmácias e pequenos supermercados geridos por minorias, entre elas negros e latinos, os forçando a vender suas casas e seus negócios. O resultado foi uma gradual e sistemática transformação social, geográfica e comercial onde o lugar-comum passaram a ser as imponentes lojas de departamentos e shopping centers frequentados por brancos heterossexuais de classe média.
Usando a hipocrisia heterosexista, ainda que camuflada sob o disfarce da busca da segurança, os políticos na verdade estavam tentando retornar ao que eles consideravam ser um passado glorioso. Naturalmente, “glorioso” não deixa de ser um eufemismo para o ambiente segregado — inclusive entre diferentes classes sociais — das décadas de 30, 40 e 50, em que ser heterossexual era o status quo, e o restante era considerado uma ameaça à família tradicional burguesa, branca e racista.
O primeiro ensaio, intitulado “Times Square Blue”, funciona basicamente como uma evocativa, bem humorada e curiosa autobiografia do autor em que testemunharemos de forma quase sempre explícita, e muitas vezes chocante, vários de seus encontros amorosos, sexuais e intelectuais com uma série de figuras que viviam nos arredores da Time Square, entre eles garotos de programas, moradores de rua, jornaleiros, engraxates, travestis e usuários de drogas abandonados pelo sistema econômico norte-americano. Delany entrevista informalmente cada uma dessas pessoas acerca de suas opiniões sobre a reconstrução da Times Square, e como elas serão afetadas. Muito deles argumentam que este processo de modernizar a Times Square na verdade era, de forma sucinta, apenas um plano dos políticos conservadores — apavorados pela epidemia da Aids e do crack — para solapar a liberdade sexual conquistada pela comunidade LGBTQ através das décadas, já que entre 1960 e 1990 o local era conhecido mundialmente por seus bares go-go, sex shops, casas de swing, cinemas pornôs e é claro, prostituição, que ironicamente já eram responsáveis por movimentar a maioria da economia da Time Square antes de sua reconstrução.
Ao relatar diferentes encontros sexuais com moradores de rua nos cinemas adultos, o autor surpreendia não apenas o leitor, mas também os próprios amantes (uso “amantes” por falta de uma palavra melhor) quando, após o acender das luzes, percebia que havia acabado de transar não apenas com um desconhecido, mas um desconhecido que por acaso era um morador de rua. Sua reação, no entanto, não era de repulsa, ao contrário, perguntava quando havia sido a última refeição da pessoa, o que invariavelmente resultava em uma ida rápida ao restaurante mais próximo para oferecer comida àquele que acabara de lhe dar prazer. Fica evidente que, embora o desejo por “rapidinhas” fosse o comportamento padrão da maioria que frequentava a Times Square, a relação de Delany com o local ia muito além do sexo casual.
“Meu atual parceiro de oito anos e eu nos conhecemos quando ele era um morador de rua vendendo livros em uma manta estendida na Rua Setenta e Dois. Nossos dois melhores amigos há muitos anos são um casal gay, sendo que um deles conheci em um encontro, talvez uma década atrás, nos fundos do agora fechado Variety Photoplays Movie Theater […] Fora minha família, esses são dois dos relacionamentos mais gratificantes que tenho: ambos começaram como contatos entre diferentes classes sociais em um espaço público.” – Samuel Delany.
O interessante da citação acima é que ela exemplifica como estes encontros desafiavam não apenas as noções de raça e classe no sentido sexual, mas também no sentimental. Relações duradouras que transcendiam o aspecto carnal frequentemente eram resultantes destes tipos de encontro. Não deixa de ser belo o fato de que Delany tenha encontrado o amor de sua vida simplesmente porque decidiu comprar livros (que não precisava) apenas para ajudar um morador de rua.
Curiosamente, as descrições dos encontros sexuais do autor são, em sua maioria, cheios de um amor angelical, uma espécie de “amor ao próximo”. Em outras palavras — e tenho certeza que não fui o primeiro a usar o termo ao me referir ao carismático autor —, Delany se apresenta como um verdadeiro anjo da guarda pregador do amor livre. De coração enorme, ele tratava todos à sua volta como seres humanos, independente de sua classe social, de sua sexualidade, ou de sua raça.

Agora imagine seguinte cena: no início da década de 50 estão em uma livraria no Greenwich Village o escritor norte-americano Ray Bradbury, ainda em início de carreira, e o escritor inglês Christopher Isherwood, que na época já era um autor consagrado. Sem saber quem Isherwood era, Bradbury, que havia publicado a coletânea de ficção científica The Martian Chronicles no ano anterior, começou a uma longa conversa sobre como os críticos literários da época ignoravam a ficção científica por considerá-la um gênero menor. Seus argumentos foram tão convincentes que Isherwood, que esporadicamente atuava como crítico para a revista Saturday Review of Literature, escreveu uma longa e positiva análise sobre The Martian Chronicles. Moral da história: o texto de Isherwood foi o responsável em transformar Bradbury em uma sensação literária, alavancando a sua carreira para o nível que conhecemos hoje em dia.
No segundo ensaio, intitulado “…Three, Two, One, Contact: Times Square Red”, Delany parte do inusitado encontro detalhado acima e abandona o estilo mais orgânico e descontraído de escrita da primeira metade do livro e opta por ma escrita mais densa e acadêmica para iniciar um debate filosófico e social sobre as diferenças entre “Contato”, que ele classifica como encontros aleatórios entre conhecidos, e “Networking”, que poderia significar encontros em busca de uma conexão profissional ou intelectual. O autor aprofunda as conexões entre os dois tipos de relacionamento e as transformações arquitetônicas ocorridas nos Estados Unidos nas últimas décadas.
Curiosamente, em sua sua obra-prima gay Um homem comum, Isherwood aborda entre outros temas, como a geografia e arquitetura funcionam como uma extensão e proteção para pessoas LGBTQ. Ou seja, um diálogo direto com os temas abordados por Delany na obra aqui analisada.
Neste segundo ensaio Samuel Delany usa vários exemplos retirados de sua própria vida enquanto um acadêmico negro e gay inserido em um ambiente em sua maioria branco e heterossexual para ilustrar como a arquitetura muitas vezes é usada para oprimir minorias, como é o caso da “arquitetura hostil”. Para Delany, as mudanças sexuais, sociais, eletrônicas e arquitetônicas ocorridas desde a década de 50 foram em parte responsáveis pelo desaparecimento das interações sociais diárias entre as pessoas, principalmente devido à evolução da internet e dos smartphones. É praticamente impossível argumentar com Delany, uma vez que basta uma breve olhadela por cima de nossos celulares para testemunharmos como as pessoas andam sempre com pressa, de olho em seus smartphones, e sem nenhuma vontade de construir relacionamentos emocionalmente significativos.
É pertinente apontar como o primeiro ensaio também funciona como uma mini-biografia da própria Time Square, e por conseguinte, das pessoas de diversas classes sociais que Delany encontrou durante os 30 anos que frequentou o local, e como estamos testemunhando memórias que ocorreram antes, durante e depois da epidemia da Aids. No final das contas, percebemos que Delany usou Times Square Red, Times Square Blue como uma mera desculpa para escrever uma longa e amorosa carta de amor para um lugar que não existe mais, com isso, uma carta de amor para os freaks, os outsiders, os malditos que nunca foram amados.