Antes de falarmos a respeito da obra de Luciene Nascimento, pedimos licença para tecer algumas palavras acerca de sua pessoa. Acreditamos que foi por volta de 2016, 2017 que um vídeo de Luciene declamando o poema que dá nome a seu primeiro livro, Tudo nela é de se amar (Estação Brasil), ganhou o país. Lázaro Ramos descreve bem a cena no prefácio da obra, “Luciene e seu black pro alto, tendo um cartaz de um evento do coletivo negro da Universidade Federal Fluminense atrás de si”. Simples, mas poderoso. Ali já era possível perceber o quanto essa mulher brilha. E essa luz toda só foi ficando mais forte, chegando a mais e mais gente. As pessoas foram se aproximando dela por conta de seus poucos poemas que até então tínhamos acesso, e foram ficando porque não é todo dia que a gente se depara com pessoas que nos fazem querer se achegar, tomar um café, ter como companhia para receber a brisa do mar no início da noite ou até mesmo dividir uma fruta diferente a cada santo dia. Sempre com muita beleza que, não raro, levava às outras pessoas. Como resistir a alguém que faz tanto bem aos outros? Difícil, né? Talvez Luciene seja um ótimo exemplo do que a magia negra é de verdade: essa força imensurável que acolhe, empodera, nos lembra o que é o amor e ajuda a seguir em frente. Como diria Rincon Sapiência (um dos admiradores confessos de Luciene), se a coisa tá preta, a coisa tá boa, pode acreditar.
Isso tudo posto, chegamos a Tudo nela é de se amar. Depois de tantos anos, enfim temos um livro de Luciene. Num primeiro momento, é de se estranhar que tenha levado tanto tempo para que seus poemas ganhassem uma reunião. Mas como a autora mesma diz, seu “texto faz referência a um período de descobertas difíceis, de escrita lenta, assentando no papel o trabalho amigável do tempo, cada mês um bocadinho sem pretender a si mesmo como poesia. Foi sendo disposto ali, conforme a vida”. E a escritura muitas vezes tem disso mesmo, leva o seu próprio tempo, obedece ao seu próprio ritmo. E não podemos esquecer que o processo de escrita se dá muito antes de pormos as palavras em disposição numa folha de papel ou numa tela em branco. E talvez justo por conta dessa espera necessária que a primeira edição da obra de Luciene tenha ganhado ilustrações belíssimas da também incrível Mariana Sguilla, que embora não influenciam na leitura dos textos, dão mais força a eles. Se Tudo nela é de se amar tivesse acontecido antes, talvez esse elo não tivesse sido feito. Como se sabe, às vezes é bom dar tempo ao tempo.
Quem já conhece os trabalhos de Luciene Nascimento não vai se surpreender com os temas que nos esperam em seu livro. Tudo aquilo que sempre pareceu caro à poeta – inclusive em seus discursos para além da literatura – se faz presente em seus textos. Logo, a autoestima de pessoas negras, a preocupação com a sua conscientização em relação a diversos temas e o respeito e admiração para com as gentes com quem convivemos no cotidiano, por exemplo, são recorrentes. Isso tudo acrescido ao projeto de Luciene de passar adiante tudo o que aprendeu e segue aprendendo por meio de suas palavras – não à toa, ela não se furta de nomear suas referências, como Audre Lorde, bell hooks e Sueli Carneiro – faz do seu movimento em chamar a sua poesia de pedagopoesia muito acurado. Em resumo, podemos dizer que Tudo nela é de se amar é uma verdadeira ode às vidas negras.
Mas para não dizer que não falamos das flores, queremos dizer que alguns dos melhores poemas de Luciene são justo aqueles que por razões desconhecidas não ganharam as redes. Tal qual aquelas bandas populares, cujas melhores músicas são as que não viraram hits. O que não é nem de longe um problema, pois a descoberta guardada para aqueles que resolvem conhecer a obra da poeta para além da superfície tem um sabor especial. É o caso de poemas como “Não existe senhora preta sem história triste para contar” e “Água corrente”. Também podemos falar de “Lucidez”, mas esse, já tem sua fama, é verdade. Todos esses são ótimos exemplos do cuidado que Luciene tem com cada palavra, com cada história e, sobretudo, com seus ritmos.
Contudo, a maior surpresa de Tudo nela é de se amar está em outra frente. Vendido como um livro de poemas, o trabalho traz também textos em prosa, na maioria das vezes sem títulos – a exceção fica a cargo de “Sobre lugares e encontros” –, que nos apresentam outra faceta da autora, nos mostrando que não é só de poemas que vivem seus escritos. Parte desses textos são comentários do seu fazer poético, o que é uma escolha curiosa, mas outra parte transcende esse esquema. E se a autora enquanto poeta prefere os versos livres aos sonetos por sentir-se mais livre, nos parece que ela encontra outro fôlego, de maior liberdade, até, na prosa. Fica difícil não imaginar como seria uma Luciene decidida e enveredar por esse caminho. Nos parece uma porta aberta. Fica a torcida para que ela um dia tenha vontade de atravessá-la.
Tudo nela é de se amar guarda em si poemas – e outros textos – que tocam em muitos assuntos delicados, mas Luciene Nascimento consegue fazê-lo com muita delicadeza. Como a autora mesma escreve, ela “vem falando rimando pra ver se não magoa”. E consegue, pois em meio às agruras, às feridas, há muito afeto. E tudo feito com muita ternura. Mas há também no livro um tanto de beleza e muito amor, mesmo que este último às vezes seja trabalhado na contrariedade. O desassossego de Luciene é o que faz dela tão capaz e preocupada em dar forma às suas inquietudes de modo que tocam tão profundo e encantam a todos que se permitem ao que ela tem e quer compartilhar. Por isso, Tudo nela é de se amar, sua biografia borboleta, é tão belo. E como Luciene mesma diz, “a beleza é um fenômeno avassalador”.
Uma resposta
O que eu posso dizer, é: Arman Neto é cirúrgico! Primeiramente enaltecer o livro de Luciene porque é exatamente essa descrição que ele deu, principalmente nessa frase, “O desassossego de Luciene é o que faz dela tão capaz e preocupada em dar forma às suas inquietudes”. É um livro que te dá amor e ao mesmo tempo te tira da zona de conforto, te atravessa de uma forma linda. Obrigada mais uma vez, Neto, por colocar no papel de forma tão leve e gentil o que gostaríamos de falar sobre “Tudo nela é de se amar”.