Um pugilista com drama familiar em busca de vingança. Cicatrizes, sangue e suor. Mafiosos e capangas estereotipados mal-encarados. Lutas arranjadas e uma quase femme fatale.
O cinéfilo filho dos anos oitenta pode ser levado a pensar que eu esteja prestes a escrever uma análise sobre Pulp Fiction – Tempo de violência. O avô desse mesmo cinéfilo, por outro lado, possivelmente soltaria uma gostosa gargalhada acerca da ingenuidade do neto, e lhe explicaria que a descrição acima certamente possui os traços de filmes como Corpo e Alma, de 1947, estrelado pelo inigualável John Garfield, ou Punhos de Campeão, de 1949, protagonizado por Robert Ryan. Ambos estariam tecnicamente certos.
Mas, oras, quem eu quero enganar? Ainda que de fato alguns senhores possam sentir a nostalgia dos filmes preto e branco, quem de fato realmente se lembrou do gênero cunhado pelos franceses nos anos quarenta fui eu. Pensei, de forma quase que imediata nos dois últimos filmes supracitados assim que a trama desse extraordinário Encontro Você no Oitavo Round (Editora Record) foi estabelecida pelo autor. Um poético romance Neo-Noir no ano de 2020 não era exatamente o que eu pensava encontrar. Não obstante, Caê Guimarães cria rimas que parecem pequenos poemas — estranhamente belos, devo confessar, visto que eu não esperava tamanha delicadeza em uma trama que aborda os temas descritos nas primeiras linhas dessa análise. O autor conseguiu criar em menos de 150 páginas uma história impressionante, repleta de um sentimento agridoce mesclado com uma atualização certeira da literatura pulp, e com doses pontuais de tragédia, uma vez que o protagonista precisa lidar com sentimentos profundamente espinhosos enquanto tenta reencontrar o seu lugar em uma sociedade que contra a sua vontade, teima em avançar no tempo.
Cristiano Machado Amoroso está contando a história de sua vida para uma jornalista, Esther, que fora obcecada por sua meteórica carreira como escritor no passado, o reencontra anos depois, já como pugilista enquanto sua carreira como jornalista parece estar estagnada. Ela, após receber o aval do chefe, começa uma reportagem sobre aquele escritor jovem e promissor que abdicou de uma carreira literária para tornar-se um boxeador mediano. Ideia, que a princípio é rejeitada por Amoroso, e ainda que ele use a desculpa contundente de que simplesmente não é interessante o bastante para ser o tópico de uma reportagem: “sou filho de classe média […] infância feliz, família amorosa […] boxeadores com esse histórico não chegam ao topo” (p. 48), fica claro que existe um trauma muito mais profundo em sua vida, e que será revelado nas últimas páginas de maneira magistral pelo autor.
Caê Guimarães. Fonte: A Gazeta
Amoroso é uma variação aprimorada do típico protagonista da literatura hardboiled: escritor talentoso e promissor, tinha tudo para se tornar um ótimo autor, entretanto, depois de um acontecimento impactante em sua vida, abandonou a carreira literária após o lançamento de alguns livros, abraçando, então, quase que de modo inconsciente, o mundo do boxe. Abraçar não seria exatamente a palavra ideal. Amoroso foi empurrado aos ringues. De fato, chegou realmente perto de ser um campeão no passado, e obteve até uma certa fama nacional. Porém, após um nocaute desnorteador, sua carreira como pugilista, assim como a de escritor, praticamente deixou de existir. Entre derrotas e vitórias, viu-se esquecido nos circuitos estaduais, e em seguida, apenas nos municipais, onde, após envolvimento com a máfia, acabou entrando em um esquema de lutas arranjadas. Agora, aos quarenta, e às vésperas da sua última luta, é tomado por uma inerente vontade de reaver o tão esquecido orgulho próprio. Com um plano bem elaborado, pretende ganhar a luta que deveria perder e fugir com o dinheiro recebido dos mafiosos.
O autor consegue a proeza de elevar a qualidade do texto página após página, culminando em uma reta final perfeita: os últimos oito capítulos, em que é chegada a tão esperada luta final, que são divididos acertadamente em rounds, gerando uma tensão ainda maior. Caê merece aplausos ao deliberadamente não transformar Esther, a personagem feminina em um objeto sexual que existe apenas para ser conquistada e salva pelo protagonista. Aliás, dependendo de nossa leitura, Esther pode, na verdade, ser considerada a salvadora — ainda que de forma não literal — da carreira literária de Amoroso. Ao subverter os arquétipos tão problemáticos conhecidos da literatura Noir, ele cria algo novo com um tipo de história que já foi contada várias vezes (um boxeador decadente e durão que dá o golpe nos mafiosos e termina com a mocinha).
A jornada pelo orgulho do protagonista é escrita por Caê com mãos precisas e poéticas que às vezes optam por um caminho mais delicado: “toda cicatriz é um texto que conta uma história” (p. 12), às vezes repreendem o passado do envergonhado protagonista: “não será nada difícil forjar uma derrota quase íntegra na última curva da minha carreira torta” (p. 17), às vezes um humor inesperado: ao falar de um bêbado querido do bairro que “pega a bituca com dedos ossudos de biruta, sopra cuidadosamente — porque, apesar de sujo, ele é limpo” (p. 21). O romance de estreia do autor soa epistolar em vários momentos, uma vez que a história é contada quase em tom de correspondência e flashbacks.
É muito difícil falar de Encontro Você no Oitavo Round sem entregar pontos importantes da trama que ilustram o brilhantismo quase cinematográfico daquele universo suado, esfumaçado e malcheiroso criado por Caê Guimarães. Posso soar repetitivo ao dizer que o romance possui ecos Neo-Noir, ou mesmo Noir clássico, porém temos combinações de passagens que mesclam o brilhantismo digno de Hammett e Chandler, como as primeiras páginas, que de um modo curioso, funcionam, inclusive, como uma sequência pré-créditos iniciais.
Em última análise, vivemos tempos curiosos em que livros nacionais questionáveis e problemáticos são adaptados com sucesso para o cinema e TV, portanto não vou perder as esperanças de ver a vida de Amoroso sendo adaptada em um filme esfumaçado que consiga captar todo o estilo visual, poético e melancólico da escrita do autor. Sei que estou sendo extremamente otimista, mas não custa nada sonhar.
*Exemplar recebido em parceria com a editora.