Publicado originalmente em 2016, Another Brooklyn — cujo título fora inspirado em Another Country (Terra estranha, na tradução brasileira), de James Baldwin —, foi lançado no Brasil em 2020 como Um outro Brooklyn (Todavia, 2020).
A obra narra a história de Augusta, uma antropóloga negra que, já adulta, retorna ao Brooklyn para encontrar seu irmão mais novo e sepultar seu pai, um veterano de guerra. Durante seu trajeto até o metrô, ela se depara com Angela, uma amiga de infância, e assim somos levados a uma retrospectiva emocional de seu passado — e do bairro nova-iorquino, por conseguinte — durante as décadas de 70, 80 e 90, bem como sua infância no Tennessee, onde ela e o irmão vivenciaram o desaparecimento da mãe. A partir desse ponto, a narrativa acompanha Augusta ao longo de sua adolescência, revelando a formação de sua forte amizade com Angela, Sylvia e Gigi, outras jovens negras que vagavam sozinhas pelo Brooklyn.
Logo de início é impossível não notar o aspecto antiguerra do romance, uma vez que nos deparamos com diversos indícios dos impactos devastadores da guerra na população negra, sendo que os eventos negativos narrados estão associados ao abandono enfrentado pelos homens negros que retornavam ao país apenas para serem marginalizados. Essa realidade criava um ciclo de violência e sofrimento que afetava não apenas os familiares dos veteranos, mas também outros moradores do Brooklyn, como mães e pais solteiros, tios, trabalhadoras sexuais viciadas em drogas e, principalmente, as vulneráveis meninas adolescentes que perambulavam pelas ruas escuras e negligenciadas do bairro, incluindo Augusta, Angela, Gigi e Sylvia.
O livro aborda diversos temas dolorosos enfrentados pela população negra nos Estados Unidos, sendo notável a maneira como a autora condensa, de forma leve, questões como o transtorno de estresse pós-traumático vivenciado por veteranos negros após retornarem da Guerra do Vietnã, e como a negligência do governo norte-americano em relação a essas pessoas contribuiu para o aumento do consumo de drogas e a exploração sexual entre mulheres negras e latinas. Outro tema delicado que permeia o romance é a descoberta sexual de Augusta e suas amigas — novamente, mais uma similaridade com Terra estranha, romance de James Baldwin que aborda a bissexualidade —, o que pode causar desconforto em alguns leitores, uma vez que a narradora relata momentos em que ela e suas amigas, ainda menores de 15 anos, eram alvo do olhar e do toque de predadores sexuais do seu entorno, incluindo pastores e membros de igreja, assim como seus encontros sexuais com namorados e namoradas também menores de idade.
É interessante observar a decisão de Woodson em aguardar o máximo possível antes de fornecer pistas sobre o destino da mãe da protagonista e o evento que desencadeou o desgaste emocional na família. Tudo o que sabemos é que eles viviam na expectativa de que a mãe retornasse um dia, para que tudo voltasse ao normal.
É notável que Woodson tenha deliberadamente desafiado o estereótipo do “pai de família negro ausente”, ao transformar as mães em figuras ausentes, como evidenciado pelo fato de Augusta e suas amigas serem criadas por pais solteiros. A ausência materna é sentida particularmente pelo irmão de Augusta, levantando a possibilidade de que a protagonista não possuía uma confidente próxima, já que sua amizade com as garotas não se desenvolveu completamente devido à chegada prematura da vida adulta marcada por traumas.
Embora o livro contenha cenas alarmantes de estupro, abuso de drogas e overdose, é importante ressaltar como a autora consegue manter uma leveza anacrônica por meio de seu estilo de escrita habilidoso. É divertido perceber que em diversos momentos a obra assemelha-se a um documento histórico, musical, fashion e cultural do Brooklyn, com descrições das roupas da época e como os estilos evoluíam ao longo das décadas, além das músicas e artistas que se destacaram nos anos lembrados pela narradora. Para os aficionados pela música negra, é interessante perceber como o Jazz gradualmente deu lugar ao Soul, que, por sua vez, foi sucedido pelo Funk setentista de Funkadelic e Sly and the Family Stone, até ser substituído pela febre da Disco Music com artistas como Donna Summer, Gloria Gaynor e Earth Wind & Fire.
A preocupação da autora com a verossimilhança, seja em relação à cena musical da época, aos aspectos políticos (com menções à Nação do Islã por meio de personagens secundários) ou ao cinema (com referências a Pam Grier, Lena Horne e Josephine Baker), contribui para tornar o ambiente da narrativa mais plausível e facilmente absorvido pelos leitores familiarizados com esses detalhes por meio de outros livros, filmes ou experiências pessoais. Essa decisão enriquece a construção dos personagens, tornando-os mais reais e multifacetados. Por outro lado, a ausência de um debate mais aprofundado sobre a bissexualidade de determinado personagem pode ser entendido como um pequeno defeito do romance. Mas, se por um lado essa discussão não é devidamente aprofundada, ao menos o tema é inserido de forma orgânica, sem soar panfletário.
Por fim, Woodson cria uma biografia de seu amado bairro ao mesmo tempo em que apresenta uma enciclopédia negra musical e fashionista ao abordar a forma como a sociedade norte-americana trata seus moradores negros como descartáveis em meio à dor e ao abandono materno. Considerando a brevidade do romance, a autora merece elogios pela maneira orgânica como equilibra todos esses temas.
2 respostas
Encontrei seu post por acaso e fiquei impressionado. Adicionei seu site aos meus favoritos e estou interessado em acompanhar mais. ^^
muito obrigada. Espero que continue nos acompanhando.