Uma noite em Miami: estreia eletrizante de Regina King na direção

Encontro entre amigos levanta debate sobre o papel político do ídolo na sociedade norte-americana

Uma Noite em Miami é uma pérola pelo simples fato de existir. Contando com a estreia na direção de Regina King (vencedora do Oscar de atriz coadjuvante por Se a rua Beale Falasse), o filme é terrivelmente atual, mesmo tratando-se de uma dramatização de uma noite na longínqua década de 60. A obra aborda a urgente discussão acerca dos efeitos da segregação racial nos Estados Unidos, da fama e do papel político dos ídolos durante tempos de crise, enquanto testemunhamos o encontro entre os amigos Jim Brown (Aldis Hodge), astro do futebol americano; Sam Cooke (Leslie Odom Jr.), músico e produtor musical; Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), ativista e militante pelos direitos civis; e o jovem Cassius Clay (Eli Goree), boxeador mundialmente famoso, e que mais tarde mudaria seu nome para Muhammad Ali. 

Os quatro amigos encontram-se em um hotel — devidamente vigiado por membros da Nação do Islã, que temia pela vida de Malcolm X — para celebrar a conquista de Ali como campeão mundial peso pesado. Uma noite que tinha todos os ingredientes para se tornar uma memorável confraternização acaba tomando um rumo inesperado quando Malcolm X decide usar aquela oportunidade para, literalmente, fazer uma palestra sobre a obrigação da celebridade negra para com seus fãs e questionar se cada um dos outros três estão de fato usando sua fama e seu poder aquisitivo para ajudar a população negra. Ideia que a princípio irrita os outros convidados, que só aceitaram o convite porque esperavam uma festa cheia de mulheres. A partir desse momento, percebemos que Regina King constrói uma narrativa com mão firme, criando rimas visuais ao mesmo tempo sutis e impactantes, com por exemplo, quando enquadra Jim Brown atrás da cortina, o deixando atrás das grades, simbolizando ao mesmo tempo a situação da população negra e a do próprio Jim Brown, que se encontra preso naquela noite que parece não ter fim enquanto pondera a possibilidade de ficar preso a papéis estereotipados caso consiga uma carreira no cinema. Enquadramento que, inclusive, nos remete à famosa imagem de Louise Beavers em Imitação da Vida, de 1934. Louise, que assim como Hattie Mcdaniel, primeira mulher negra a vencer o Oscar de melhor atriz coadjuvante em 1940 por E o vento Levou, e Juanita Moore, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por seu papel na refilmagem de Imitação da Vida, ficou presa durante muitas décadas aos papéis de empregadas, escravizadas e o mundialmente estereotipado papel de Mammy.

Cada um dos quatro astros, ao seu modo particular, estão insatisfeitos com suas carreiras ou vidas vidas pessoais: Cassius Clay pensa em entrar para a Nação do Islã, Malcolm X, por sua vez, estuda o modo mais eficaz de abandonar a organização religiosa — decisão que gera uma das cenas mais desconfortáveis do filme, uma vez que essa decisão é entendida como traição pelo jovem Cassius Clay. Jim Brown pensa em largar sua carreira no futebol americano e se tornar um ator de cinema, decisão que não é bem entendida por seus amigos, já que naquela àquela época atores negros estavam destinados a papéis minúsculos como serviçais, ladrões, escravizados, etc. As exceções que consigo lembrar no momento são Sidney Poitier (Adivinhe Quem Vem Para o Jantar, de 1967), Harry Belafonte (Carmen Jones, de 1954, Homens em Fúria, de 1959), e James Edwards (O Grande Golpe, de 1956). Durante a noite que supostamente deveria ser de confraternização, Sam Cooke é questionado por Malcolm X sobre ele só fazer música para o público branco — e a cena em que Malcolm X o força a escutar “Blowin’ in the Wind” é particularmente catártica para o cantor.

O destaque é a dinâmica entre os 4 amigos, porém, infelizmente, assim como Um Limite Entre Nós, de 2016, e A Voz Suprema do Blues, de 2020, Uma Noite em Miami, em alguns momentos, acaba sofrendo com um problema já recorrente em adaptações de peças de teatro: ficamos com a impressão que estamos simplesmente assistindo atores andando e falando; e ainda que a diretora consiga disfarçar essa sensação com transições e planos elegantes, é evidente que o filme se beneficiaria com um pouco mais de movimento.

Embora Uma Noite em Miami esteja concorrendo em três categorias no Oscar (Leslie Odom Jr. como melhor ator coadjuvante e em melhor canção original, e Kemp Powers em melhor roteiro adaptado) é impossível não lamentar a ausência de Regina King entre os indicados na categoria de melhor direção, fazendo companhia à Emerald Fennell e Chloé Zhao, cujos filmes Doce Vingança e Nomadland respectivamente são dois dos pontos altos de 2020. Já nas atuações, o destaque fica por Ben-Adir (The OA) no papel de Malcolm X, que preocupado com a sua vida e a de sua família, está sempre com a sensação de que está sendo vigiado, paranoia essa que acaba afetando o espectador, uma vez que sabemos perfeitamente o que aconteceu com o ativista um ano mais tarde.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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