Que Lima Barreto é um dos mais importantes nomes da literatura brasileira, poucos hoje teriam coragem de discordar. Dono de uma obra crítica, que toca em tantos temas caros para o debate público sem perder de vista que o que fazia era arte, Lima Barreto hoje – cem anos após a sua morte – ocupa um espaço de destaque entre nossos autores. Celebrado, tem muitas pesquisas em torno de seu trabalho e de sua vida, homenagens das mais diversas e o principal, leitores apaixonados. Com isso, não é de se espantar que também influencie – ou melhor, inspire – diretamente a criação literária. E isso é exatamente o que ocorre em Uma temporada no inferno (Malê Edições), romance de Henrique Marques Samyn.
Construído por meio de fragmentos, mimetizando o diário de um autor inominado, Uma temporada no inferno é um trabalho experimental que procura, por meio de notas, ora mais curtas, ora mais longas, amarrar os fios de sua narrativa. Contudo, é interessante a estratégia de Samyn: as entradas desse diário não são postas de forma cronológica, conforme somos informados logo no preâmbulo do livro. O que nos faz, inclusive, imaginar como seria ordenar linearmente esse diário – teríamos outro romance? Descobriríamos algum segredo se adotarmos uma leitura mais conservadora? Faríamos conexões que de outra maneira é impossível? Seria essa apenas uma provação do autor? Não sabemos, mas que fique aqui o incentivo àqueles que quiserem mergulhar mais a fundo no romance.
Mas do que se trata, afinal, essa temporada no inferno? Pois bem. No romance de Henrique Marques Samyn acompanhamos um escritor que se interna por livre e espontânea vontade em um hospício a fim de ter uma experiência mais próxima possível da que teve Lima Barreto em sua vida. Numa mistura de fascínio e obsessão, tudo o que esse autor almeja é superar seu ídolo. E para tanto tem o plano que julga perfeito: terminar o livro que Lima Barreto não conseguiu terminar, O cemitério dos vivos.
O romance se passa após o ano de 1935, aparentemente abrangendo um período que dura por volta de um mês (as entradas do diário são quase sempre datadas em um mês de dezembro e em um mês de janeiro). Ou seja, ao menos quinze anos depois do fim da segunda internação de Lima Barreto. E ao seu decorrer, acompanhamos as reflexões do narrador, que acabam por nos levar a caminhos sinuosos, onde a loucura parece estar sempre à espreita e o racismo sempre presente.
Vale mencionar a personalidade do protagonista da história. Como todos aqueles que se acham demais, sua personalidade é egocêntrica, sendo também dono de uma megalomania particular. Suas notas por vezes parecem devaneios, revelando um homem presunçoso. Não são poucos os momentos em que se expressa de maneira petulante. O tipo de pessoa que a gente imagina ser alguém que acredita ser um gênio, maior do que todos. Inclusive daqueles que de fato o são. Contudo, não demora para questionarmos sua sanidade. Conforme mais informações sobre sua estadia no Hospital Psiquiátrico da Praia Vermelha nós temos, mais difícil se torna presumir qualquer coisa. As incertezas passam a ser outro elemento presente – não só para esse narrador-autor, como para nós, leitores. Tudo o que queremos é montar esse quebra-cabeça.
Henrique Marques Samyn nos propõem conversas importantes em Uma temporada no inferno. Para além das questões raciais – aqui presente na percepção de si (e de Lima Barreto) como sujeito negro por parte do narrador-personagem, além do racismo por ele sofrido –, temas tão caros ao autor, também somos postos diantes da violência manicomial e algum debate em torno da loucura. E a escrita de Samyn, que nesse romance é por vezes ensaística, inclusive flertando com a crítica literária, ajuda a manter esse tom. Em suma, Uma temporada no inferno é homenagem honesta que busca fazer jus a Afonso Henriques de Lima Barreto, preto imortal que teve a audácia de ser quem foi sem abaixar a cabeça para ninguém.