À Rafaela Miranda, a respeito de ‘Uma terra casa tem esse nome algum’, seu poemário que não se quer branco

Antes de qualquer coisa, sobretudo para manter a lisura destas palavras, preciso deixar algo bem claro: Rafaela Miranda é minha amiga. Portanto, assumo aqui a primeira pessoa do singular. Assim, deixo evidente a natureza da relação e afasto a distância e a impessoalidade da terceira pessoa do plural. O faço também porque há um quê de relato em parte do que quero dizer aqui e que extrapola a economia dos poemas de Rafaela. E caso você que me lê me ache muito suspeito — e talvez eu seja — para tratar do trabalho de uma pessoa tão querida, lhe faço o convite: trate este texto como uma manifestação pública das minhas impressões de Uma terra casa tem esse nome algum (Claraboia) para a Rafa, que até agora não faz ideia do que achei de seu livro. Impressões essas que prometo serem as mais honestas e justas possíveis, visto todo o respeito e admiração que tenho pela autora não só como amiga, mas também como poeta. 

Conheci a Rafa na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. À época, tive o privilégio de participar de alguns projetos com ela. Um deles foi a elaboração da oitava edição da Revista Odara, sob o título “Não Corra!”, na qual buscamos fugir da perspectiva da branquitude para pensar o país por meio de trabalhos acadêmicos e artísticos, lançando mão de uma edição composta apenas por autores negros. Diante do histórico — e do corpo de colaboradores — da Odara, esse foi um movimento e tanto. E só possível por causa da Rafa. Essa era uma ideia e vontade antiga dela que, segundo as minhas percepções, sempre enfrentou resistência. Felizmente, Rafa estava mais disposta do que nunca e lutou pelo projeto que, enfim, ganhou vida. Ver como ela conduziu tudo foi uma grande inspiração e ensinamento. Um norte para como lidar com várias situações afins vida afora. 

O outro projeto — e o mais especial, pessoalmente falando — que compartilhei a experiência com a Rafa foi o Transcultura, um grupo de estudo, pesquisa e criação que, no fundo, era muito mais do que isso. Com o intuito de se debruçar sobre a obra e o pensamento de autores negros, o grupo logo se tornou um espaço muito importante de troca e acolhimento. E em meio a pontos de vistas e opiniões tão diversos, o que foi construído ali, naquele tempo e espaço, fora muito bonito. Uma das melhores — se não a melhor — experiência que tive na Faculdade de Letras. Com certeza a mais impactante. E tudo criado e autogestionado pelos alunos que o compunham, sendo a própria Rafa uma de suas idealizadoras. E foi durante os encontros do grupo que tive o primeiro contato — que viera antes do Projeto Odara — com a intelectual formidável que Rafaela é: inquieta, orgânica, corajosa e crítica. Desde então, sempre que ela fala, eu ouço. 

Como era de se esperar, a grandiosidade de Rafa se converte para o seu texto. E se eu já admirava a pessoa e a pensadora, sentir o mesmo pela escritora-poeta foi natural. Não posso dar certeza, mas creio que a primeira vez que eu tive contato com a sua poesia foi na pequena reunião feita pela importante Mulheres Que Escrevem. Depois disso, teve o seu “País das mulheres”, na Totem e Pagu; “deus é pura biologia”, na revista torá; e mais três de seus poemas no Ruído Manifesto. Ela também aparece em Estamos aqui, antologia organizada por uma de nossas maiores poetas, a Lubi Prates. Porém, sou especialmente tocado pela breve homenagem que Rafa fez para a Morrison à época de sua passagem. Tudo isso posto, para mim não havia mistério: era praticamente impossível não ser arrebatado pela força que exala de seus textos. E isso fez com que de todas as pessoas que conheço e escrevem, sejam elas poetas ou prosadoras, a Rafa sempre tenha sido a que mais torci para ver suas palavras voando por aí. Acho que não preciso dizer a alegria que senti ao saber de seu Uma terra casa tem esse nome algum

Rafaela Miranda. Fonte: https://www.instagram.com/editoraclaraboia/

Rafa, lembro que certa vez disse que o seu texto tem uma força que eu não ousava tentar pôr em palavras. Que é o que é dito, mas também a maneira como você o diz. Coisa que só você é capaz. Não retiro nada disso, exceto, claro, que irei sim tentar pôr em palavras as minhas impressões a respeito de sua escrita. 

É muito difícil não se encantar com a sua poesia, Rafa. Ao fazer do que é caro para ti tema de seus poemas, em vez de criar algum distanciamento, você aproxima. Há algo de mágico nesse movimento de falar de si — mesmo que indiretamente — e ainda assim ressoar no outro, na gente. Em muitos momentos, me vi em seus versos. Reconheci cenas, reconheci afetos mesmo que as experiências não tenham sido as mesmas. A partir das suas imagens, recriei as minhas. E isso é poderoso à beça. 

A maneira como você mobiliza tudo aquilo que te desloca e te inquieta é única e original. Isso fica (mais) evidente quando seus poemas tratam de assuntos que não são inéditos. Você consegue percorrer caminhos diferentes, voltando-se para tais questões de um prisma ímpar. O que eu quero dizer é: se com outros autores, poetas ou não, é comum que suas referências nos saltem aos olhos, com a gente percebendo uma Ceição aqui, uma Gilka acolá, com você não enxergo outra pessoa que não a Rafaela Miranda. Você até nos dá bastantes pistas de quem te influenciou, mas a sua voz é tão própria que se eu, que te conheço, me esforçar um pouquinho, consigo ouvi-la com clareza dizendo palavra por palavra enquanto leio cada poema seu. 

Mas deixe-me ser mais objetivo. Não sei se faço sentido, mas a primeira parte de Uma terra casa tem esse nome algum me soou como a percepção de si enquanto corpo, enquanto alguém. Todo o devir animal que percorre os primeiros poemas me parece apontar a uma consciência do existir, de ser algo ou alguém no mundo, que “devagarinho, devagarzinho” vai se formando. Essa leitura fica mais forte aqui com o — profético? desejoso? sabido? ou apenas coincidente? — “Aquela garota surge”. O saber de si a ponto de não ter dúvidas que dar à vida é uma possibilidade. E que isso vem por meio do prazer de “te refazer sempre / quantas vezes / forem necessárias”.

Em “Colagens” temos um belo exemplo da sua grandeza, Rafa. Com signos tão familiares à tantas e tantos, o que reforça o que falei há pouco sobre rememorar as próprias questões a partir do que você canta com seus poemas, num misto de reconhecimento no não vivido, ainda assim não estranho, você constrói essa narrativa em fragmentos que dá conta do que é crescer. Sobretudo, num país racista e LGBTfóbico como o Brasil. 

Outro momento em que você nos deixa em suspensão, Rafa, acontece com “P/BASQUIAT OU PORQUE TER IDO TRÊS VEZES A SUA EXPOSIÇÃO NÃO FOI SUFICIENTE”. O diálogo que você tem com Basquiat nesse poema é uma porrada. “Pesa nos ossos”, como você conta a ele — tanto com os ditos, como com os não ditos e o que está nas entrelinhas. Apesar de tudo, há esperança. E ela traz algum alívio. 

“A coluna da garota” é um dos meus poemas favoritos. Não só dos que você escreveu, mas de todos os que já tive a sorte de esbarrar. A maneira como você trata um tema tão sensível me toca profundamente. É delicado e carinhoso. Não sei se você percebe isso — mas espero que sim. 

Por fim — apenas para não me alongar por demais —, não poderia deixar de comentar “— carta, mãe. carta.”. Você sabe melhor do que eu que esse poema não é pouco, e nem precisa de decisão para se achegar a tanto. A beleza aqui é exuberante. Você faz de suas palavras oceano e isso é bonito demais. A franqueza, a ternura do refrão… Em “Colagens” você cria uma imagem estonteante com “vocação artística pra destruição”. Logo pensei em vocação artística para a criação — por mais redundante que isso possa ser. E essa ideia me acompanhou durante todo o seu livro — ou acompanha, pois sigo lendo e relendo sua terra-casa. Mas ao chegar aqui, nessa carta, outra ideia me inunda; ou melhor, se desvela, pois percebo que ela esteve o tempo todo aqui, querendo ser apercebida: Rafa, você também tem vocação artística para o amor. E consegue manifestá-lo de diversas formas. A anunciação que você — ou o sujeito poético, risos — faz sobre ser uma irmã gêmea de sua mãe — ou da dele, risos — é das coisas mais bonitas e poderosas. E ao dizer isso, percebo que tenho repetido muito algumas expressões aqui, mas é que elas me soam inescapáveis. Enfim, a catarse que explode com o avento do universo dizer que “Foi por acaso / Que te trouxe antes de sua filha / Foi só por acaso / Que te trouxe depois de tua mãe” é inefável. Só nos é possível emocionar. 

Rafa, meu bem, eu queria ter sido menos impressionista ao expor meus sentimentos em relação ao seu Uma terra casa tem esse nome algum. Contudo, acho que se eu o fizesse de outra forma, jamais seria tão honesto quanto tentei ser aqui. Sei que minhas palavras podem ter sido vacilantes, subjetivas ou até mesmo um tanto vagas, mas a maneira como fui tocado por esse sonho materializado — e, sim, Uma terra casa tem esse nome algum era um sonho — me impedia a formalidade. Sem contar que acredito que pessoas mais gabaritadas do que eu para falar sobre poemas e suas questões formais ainda se debruçarão sobre o seu trabalho. Queria também ter comentado outros poemas — em especial “Amada”, que imagino que saiba ter um lugar especial em mim —, mas como disse, não queria me demorar mais ainda. Isso posto, a ideia de terra-casa-corpo que circunda esse seu “poemário que não se quer branco” — e não o é — é muito apropriada, pois a sensação de acolhimento frente à identificação é algo recorrente diante de sua leitura. E isso ressalta outra qualidade que reflete algo que sei que lhe é imprescindível, que é a sua preocupação com o coletivo. Me parece claro que você sempre tem um nós perto do coração. Assim como também sinto uma revolta, uma insurgência, sempre nas beiradas de suas palavras, sempre prestes a explodir. É bom saber que a inconformidade é algo que te guia. Também fico muito feliz de saber que assim como você celebra e reverencia as suas mais velhas e todas aquelas que vieram antes, que elas, assim como as suas contemporâneas e as mais novas que sempre chegarão à sua poesia, também te celebram. Não é à toa que gente como Lubi Prates e Nina Rizzi falam de ti e de seu trabalho com tanto orgulho e admiração. Me parece ser a coisa mais natural, assim como creio que essas águas serão sempre abundantes.

Uma terra casa tem esse nome algum é um assombro maravilhoso, Rafa. Daqueles que a gente não sabia que precisava tanto. Obrigado por cuidar da gente. Muito obrigado. 

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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