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Literatura estrangeira

A Fazenda dos Animais de George Orwell e sua nova tradução

“A mão da vingança encontrou o leito
Em que o Tirano Púrpura fora se refugiar.
A mão férrea golpeou o Tirano no peito
E se tornou Tirana em seu lugar”
– William Blake

Antes de abrir o livro imaginei que pouco poderia ser acrescentando sobre A Fazenda dos Animais, conhecido por muitos como A Revolução dos Bichos, porém, a nova edição publicada em 2020 pela Companhia das Letras, com tradução de Paulo Henriques Britto, consegue não apenas agregar à riqueza da obra original — devido a nova tradução do título, agora literal, uma vez que a palavra “revolução” não aparece nenhuma vez na versão original em inglês, e sim “rebelião” (a edição espanhola fora traduzida como Rebelión en la granja) , como também nos ajuda a entender, com a adição do prefácio à edição ucraniana escrito pelo próprio autor em 1947 (e que seria enviada a refugiados alojados em campos alemães, mas que fora apreendida pelas autoridades americanas e entregue a funcionários soviéticos), a mente de um dos autores mais vendidos do século 20.

A história, como já sabemos, é mundialmente conhecida: um grupo de animais cansado do abuso sofrido pelo dono, se organiza, e o expulsa da fazenda, passando a comandar o local, que ganha o novo nome de Fazenda dos Animais. Todavia, essa rebelião só funciona por um curto período, uma vez que os porcos não castrados — liderados pelo porco Napoleão, passam a agir de forma gradual como os opressores humanos, escravizando os animais considerados desprovidos de inteligência de forma ainda pior do que no passado. Escrita da forma mais acessível possível, essa fascinante alegoria pode ser entendida como uma simples história infantil, caso seja lida por crianças (ou por adultos sem a perspicácia na interpretação dos temas abordados por Orwell), mas com o passar dos anos, camadas e mais camadas poderão aparecer caso a criança, agora experiente, tenha se tornado mais consciente e mais politizada.

“Não é possível para nenhum ser pensante viver numa sociedade como a nossa sem desejar mudá-la”. – George Orwell

Como foi dito no primeiro parágrafo, essa edição lindíssima conta com um prefácio escrito pelo próprio autor, e ali ele explica os motivos pelo quais se sentiu obrigado a escrever a sátira, bem como sua origem: ao ver um cavalo imponente ser chicoteado por um franzino menino de dez anos, o autor, a partir dessa cena, usou a teoria de Marxs para construir sua fábula sobre a relação animais x humanos como uma analogia da exploração dos ricos sobre os pobres, e o que aconteceria se os oprimidos tomassem o poder. Em seu seminal A Pedagogia do Oprimido Freire escreveu que “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”, e como vimos, é de fato o que acontece gradativamente quando o porco Napoleão passa a comandar a fazenda após o derradeiro ataque aos humanos. 

O autor também escreve sobre a falta de visão de algumas editoras que, ou entendiam que criticar a URSS naquela época não seria indicado, ou, no caso das americanas, simplesmente não enxergaram a mensagem por trás da alegoria, dizendo que não fazia sentido publicar uma historinha com animais naquele período de guerra. Orwell viu sua obra ser recusada inúmeras vezes até ser finalmente publicada pela editora inglesa Secker & Warburg. Mas em uma ironia bastante sintomática, acabou sendo lançado anos depois em forma de animação pelo FBI, que parecendo não dar a mínima importância para a mensagem do autor — que entre outros temas, denunciava a deturpação da realidade por regimes totalitários —, a reformulou, acrescentando um final feliz, e assim, provando o ponto do autor.

Além do prefácio, essa nova edição conta também com um capítulo especial contendo nada mais nada menos do que 70 anos de capas de A Fazenda dos Animais, e com outros 8 ensaios sobre a obra, sendo “Literatura política e fantasia patriarcal”, escrito de forma contundente por Daphne Patai, o mais relevante de todos. A autora analisa a obra através de um recorte não só de classe, mas também —e principalmente — de gênero. Em sua análise, ela aborda o papel do feminismo dentro da revolução socialista com minuciosa precisão, demonstrando como o movimento falha ao contestar o patriarcado, pois acaba por reproduzir em momentos ulteriores, os mesmos valores patriarcais, porém dessa vez mascarados como revolucionário. Além de problematizar o modo patriarcal da obra, Daphne observa a ideia, no mínimo infeliz, de relacionar a inteligência com a exploração, indicando a errônea noção de que dedicação, paciência e empatia “são incompatíveis com a inteligência” (p. 212).

Adiante ela apresenta uma improvável, porém necessária leitura feminista da fábula, que através das divisões de tarefas baseadas no gênero e na inteligência dos animais, demonstra a dominação do patriarcado dentro da fazenda, de modo que os porcos mandam (desde que sejam os reprodutores, e não os castrados), e as fêmeas são irremediavelmente submissas, maternais e parideiras — mesmo quando são fortes e saudáveis, como é o caso da égua Chica. Entretanto, quando atingem a meia idade são consideradas fracas por terem gerado 4 potros; já o porco Napoleão, mesmo gordo e velho é considerado um líder imponente por ter gerado mais de 300 porcos. O papel da fêmea na fábula ainda se torna mais trágico, pois em determinado momento, Napoleão sequestra 4 filhotes de cachorros recém nascidos sem se preocupar com o sentimento da cadela como mãe (ironicamente, ignorando por fim a função principal da mulher na fábula: ser mãe).

No período pós-rebelião, os animais desprovidos de inteligência são enganados, devido à propagação de propagandas fascistas dos porcos, não obstante, acreditando que são de fato livres de qualquer opressão, e que trabalham para si mesmos. Não pude evitar de traçar um paralelo com os pescadores citados por Freire em A Pedagogia da Esperança, que extasiados por trabalhar na imensidão do mar, acreditam ser de fato livres, quando na verdade são constantemente explorados por seus chefes ricos.

Cada tradução carrega as marcas de sua época. – Marcelo Pen

Para finalizar, no ensaio “A tarefa do tradutor”, Marcelo Pen analisa as diferenças entre a versão de 64 e a atual, assim como os motivos por trás da decisão de usar uma tradução literal do título — e que, como não poderia deixar de ser, a decisão foi motivo de acalorados debates entre internautas ferrenhos e exaltados de ambos os lados —; e destaca a diferença nas versões do hino cantado pelos animais em ambas as edições. 

A Fazenda dos Animais agrega tanto ao colecionador quanto ao leitor de primeira viagem no universo orwelliano, portanto, que seja muito bem vinda essa nova edição.


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