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Victor LaValle e o sobrenatural em “A balada do Black Tom”

magem com o fundo marrom e a capa do livro "A balada do Black Tom" acompanhada de uma foto do escritor Victor Lavalle

O que devemos fazer quando descobrimos comportamentos reprováveis de pessoas cujo trabalho não apenas possui um peso em nossa formação cultural, mas, principalmente, como memória afetiva? Devemos tentar separar a obra do artista ou simplesmente abandonar a carreira da pessoa, deixar de consumir projetos futuros e nunca mais revisitar clássicos que nos formaram culturalmente? Essa foi uma pergunta que passou pela mente de Victor LaValle, autor da surpreendente obra de horror cósmico A balada do Black Tom, publicada no Brasil pela editora Morro Branco em 2018 — com tradução de Petê Rissatti. Fã ávido do horror fantasioso de H. P. Lovecraft durante sua infância, ele se viu influenciado pela obra do autor sem se dar conta de quão racista era o sujeito. Ainda adolescente, entretanto, LaValle acabou percebendo o racismo escancarado de Lovecraft, e como resposta, já adulto e escritor de sucesso, escreveu A balada do Black Tom como uma releitura de O horror em Red Hook, mas com uma mudança fundamental: a história é contada do ponto de vista de um personagem negro.

Considerado uma das obras mais racistas e xenofóbicas de Lovecraft, O horror em Red Hook é um conto de literatura pulp policial com teor ocultista publicado originalmente em 1927, e tem como protagonista Thomas Malone, um detetive branco que investiga a possibilidade de Robert Suydam, um homem branco, recluso e milionário estar envolvido em vários sequestros de crianças brancas de olhos azuis em Red Hook, no Brooklyn. 

Já em A balada do Black Tom o protagonista é Tommy Tester, um jovem vigarista negro de 20 anos que ganha a vida no Harlem na década de 20 fazendo pequenos trabalhos de origem duvidosa para poder cuidar do pai de 40 anos, que ficou impossibilitado de trabalhar após a morte da esposa. Usando a persona de músico de rua como disfarce para aplicar seus golpes, ele se veste propositalmente de forma elegante — mas sem fazer esforço — enquanto finge que toca algumas notas de jazz e blues. Nas palavras do próprio LaValle, Tommy é um ilusionista. Ele age, se veste, se movimenta e fala como se fosse um músico experiente para ganhar seus trocados.

Narrada em terceira pessoa, a história tem início quando Ma Att, uma mulher alta e esquelética que vive em um bosque escuro e afastado da cidade, contrata Tommy para encontrar um livro diabólico. Após alguns dias, quando finalmente consegue encontrar e entregar o tal livro para ela, Tommy é abordado por ninguém mais ninguém menos do que Robert Suydam — o vilão de O horror em Red Hook — quando esperava o metrô para retornar ao Harlem. Encantando com os dotes musicais do Jovem, Suydam o convida para tocar em uma festa em sua mansão em três dias. O cachê de 500 dólares oferecido seria o suficiente para 1 ano de aluguel e compras, logo, Tommy sequer cogitou dizer não à oferta. Não obstante, imediatamente após receber parte do pagamento, Tommy é abordado por outro personagem de O horror em Red Hook: Thomas Malone — o protagonista daquela história — que assim como no conto original, investiga o envolvimento de Suydam nos sequestros das crianças brancas.

A partir daí iremos acompanhar de forma alternada, e em determinados momentos, a interseção das histórias de ambos os protagonistas. Tommy, que adotando o imponente nome de Black Tom após sofrer uma devastadora perda, decide combater o racismo e a brutalidade policial norte-americana de forma mais drástica: usando poderes ocultos. E Malone, um detetive branco — racista passivo, ou seja, sem demonstrar sinais de ser antirracista — aficionado pelo ocultismo, agora terá que investigar não apenas os sequestros iniciais, mas também uma complicada trama envolvendo forças diabólicas, portais para outras dimensões e entidades cósmicas, mais precisamente Cthulhu.

Imagem: Divulgação

Para quem gosta de blues, jazz, ou, mais precisamente, de romances que se passam nos fabulosos “Roaring Twenties” norte-americanos período de efervescência cultural, artístico e social que aconteceu na década de 1920 — o livro é um prato cheio, principalmente pela atenção que LaValle dedica às descrições das ruas, dos bares, da fisionomia das pessoas, e das roupas dos personagens. Não é à toa que Tommy Tester, com seus ternos propositalmente envelhecidos e com seu violão sempre pendurado nos ombros, é quase um ícone fashion, uma espécie de hipster que provavelmente seria fã de Thelonious Monk.

Ainda que nenhum artista seja de fato citado na história, é impossível não lembrar de músicas de Bessie Smith — cantora mais famosa dos anos 20 e 30 — enquanto somos transportados para a era cuidadosamente criada por LaValle. A época em que a história é tão rica e abrangente que irá interessar até mesmo aos fãs da “Lost Generation” — movimento literário batizado e formado pela escritora Gertrude Stein, além de nomes como Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald, John dos Passos, T. S. Eliot, entre outros, que tinha como características personagens desiludidos com o rumo de suas vidas, passando seus dias bebendo muito, jogando, viajando e dirigindo em alta velocidade. Atividades que convenhamos, eram as preferidas também dos autores.

Ainda existe a musicalidade, ou, melhor, a herança musical em sua família — o pai era um exímio violonista, a mãe era uma pianista talentosa —, que curiosamente saltou uma geração, o deixando sem talento algum, seja para instrumentos, ou para a voz. O máximo que Tommy conseguia fazer era cantarolar algumas músicas. Não era muito, claro, mas era o suficiente para ganhar um dinheiro fácil de pessoas brancas que consideravam o blues — e talvez ele próprio — como algo exótico. É interessante percebermos que para seus golpes funcionarem, para que ele consiguisse interpretar bem essa persona ele precisava ir para bairros brancos onde seria considerado uma exoticidade, uma vez que ninguém no Harlem prestaria atenção em mais um homem negro tocando blues na rua. O que nos leva novamente ao cuidado de LaValle na hora de criar o senso de moda de Black Tom.

Desconstrução e ressignificação do horror

Se Lovecraft pensava que a maior forma de horror que os humanos poderiam enfrentar eram criaturas cósmicas sem nenhuma empatia pela raça humana; LaValle aplica esse pensamento nas pessoas brancas racistas. Em outras palavras: pessoas brancas se preocupam com monstros de outra dimensão, já pessoas negras precisam se preocupar com os monstros humanos que os matavam e os linchavam sistematicamente. Não custa nada lembrar que a ideia central das obras de Lovecraft (a paranoia, o medo contínuo de que algo ou alguém irá acabar com a sua vida) é provavelmente como LaValle se sentia enquanto uma criança negra, constantemente com medo de todas as pessoas brancas que via na rua. Daí nota-se o brilhantismo de LaValle ao desconstruir a ideia do que “horror” pode significar para cada pessoa dependendo de sua raça. Mais simples, impossível.

Algo preocupante em A balada do Black Tom, entretanto, é a atemporalidade de alguns detalhes da trama, em especial — e infelizmente — o racismo e a brutalidade policial. Em determinado momento, por exemplo, um personagem negro é alvejado 57 vezes por um grupo de policiais; já em outro, um policial confunde um instrumento musical com uma carabina e descarrega sua arma duas vezes em outro personagem negro. Em seguida eles sentam, conversam e almoçam normalmente enquanto o corpo espera a chegada da autópsia. A cena citada acima acontece nos anos 20, mas não precisamos voltar tanto no tempo para achar algo assim na vida real, aqui mesmo, no Brasil: não muito tempo atrás houve o caso em que um senhor negro morreu em um supermercado e as pessoas continuaram as suas compras, os funcionários continuaram a trabalhar normalmente ao lado do corpo como se nada tivesse acontecido.

A novela é repleta de momentos impressionantes de ação, mas de modo não tão estrondoso estão debates sobre o racismo que não parecem estar debatendo racismo, como por exemplo, a troca sucinta de palavras a seguir entre Malone e Tommy, mas que funciona como uma perfeita síntese que resume não apenas décadas de vivências de pessoas negras, mas também o tratamento que elas recebem da mídia e da sociedade quando finalmente decidem, ou conseguem, revidar os crimes sofridos ao longo de décadas:

— Carrego um inferno dentro de mim — rosnou Black Tom. — E quando descobri que ninguém tinha compaixão por mim, quis arrancar árvores, espalhar o caos e a destruição ao meu redor e depois me sentar e desfrutar da ruína.

— Então você é um monstro — comentou Malone.

— Fizeram de mim um monstro.

Arte versus autor

Imaginem a seguinte situação: você está no Twitter e se depara com um vídeo em que alguém faz comentários racistas. Você não concorda com a mensagem do vídeo, mas cita o tweet ao fazer a sua crítica. Ou seja, no processo de criticar uma pessoa racista você acabou divulgando as ideias racistas daquela pessoa para todos os seus seguidores, fazendo a mensagem inicial chegar em mais pessoas, inclusive na timeline de quem pode acabar concordando com os comentários — que agora também irão compartilhar aquela mensagem. Bem, é mais ou menos isso que acontece nos extras de A balada do Black Tom, já que ao final da narrativa, a editora decidiu incluir de forma integral o conto O horror em Red Hook. O motivo não fica muito claro apesar da existência de um texto dizendo que Lovecraft era “um homem de seu tempo, um tempo no qual ideias racistas, xenofóbicas e misóginas eram menos publicamente repudiadas, além de afirmarem que “a responsabilidade do leitor contemporâneo é interpretar o texto sob um olhar crítico” (p. 146).

De qualquer forma, o que parece é que a editora decidiu incluir o texto original para que os leitores pudessem tirar suas próprias conclusões acerca da linguagem ofensiva, racista e xenofóbica de Lovecraft — como se existisse pontos de vista, ou opiniões a serem consideradas em casos de racismo —, ou, quem sabe, na melhor das hipóteses, para os leitores simplesmente terem uma noção das mudanças feitas por LaValle em sua crítica/homenagem à literatura que o fascinava quando garoto, o fazendo devorar praticamente todos os livros do autor até a adolescência.

Em última análise, A balada do Black Tom é um livro que irá surpreender não apenas o leitor que já possui a bagagem literária (ou estômago?) e que já tenha encarado a obra de Lovecraft, mas também para quem é fã de nomes como Shirley Jackson e Clive Barker — influências diretas de LaValle —, além, é claro, para os aficionados pela literatura policial, principalmente o gênero Noir, pois LaValle mescla vários elementos de todos os gêneros citados acima com pertinentes comentários políticos, raciais e sociais ao construir uma história repleta de ação, violência estilizada e um clímax de tirar o fôlego. 

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