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Nuances do racismo em “Um preto de classe média”, de Cardoso de Lima

Ser um corpo negro no mundo não é tarefa fácil. É preciso equilibrar nossas próprias expectativas com o que a sociedade espera, sem deixar que as expectativas alheias nos limitem ou nos impeçam de conquistarmos nossos desejos ou ascendermos socialmente. Mas quanto custa sonhar e trabalhar por uma vida melhor e mais digna, quando não dá para fugir dos rótulos e estereótipos?

Um preto de classe média, de Cardoso de Lima, publicado em 2021 pela editora Viseu, é um livro de ficção que de modo objetivo mostra o impacto do racismo na vida de pessoas negras de diferentes formas, mesmo que elas não percebam. A narrativa é alternada por diferentes pontos de vista de personagens envolvidos em um acontecimento ocorrido em um dia de agosto de 2019. Essa é uma forma interessante de apresentar os acontecimentos, porque a pessoa que lê pode ver como os personagens são diferentes e também saber outra versão da mesma história, que dependendo de quem conta, favorece ou desfavorece as pessoas envolvidas.

É assim que conhecemos Edmílson, um homem negro que trabalha como porteiro e nas horas vagas é motorista de aplicativo para conseguir sustentar a família e pagar um colégio particular para seu filho Jonas. Edmílson se mostra uma pessoa crítica, observadora e que sabe identificar o tipo de passageiro que transporta. Ele até inventou categorias para classificar cada um deles e faz uma leitura certeira do mundo.

Jonas estuda na mesma classe que o filho do síndico do prédio em que Edmílson trabalha, o que poderia ser uma boa coincidência, mas ser colega de classe potencializa as diferenças sociais e raciais que existem entre os dois. Jonas, sendo o único estudante negro do turno da tarde, sofria perseguições que poderiam ser classificadas como bullying, mas um dia, as “brincadeiras” do colega branco passam dos limites, os dois vão parar na diretoria e os pais de ambos são chamados. É quando a máscara cai. Edmílson se dá conta que trabalha e convive com um racista que não tem medo nem vergonha de expor suas opiniões ofensivas e criminosas, comportamento que o filho reproduz e que afeta Jonas diretamente.

Depois do episódio na escola, Edmílson tenta tomar uma das medidas cabíveis em situações de racismo: fazer um boletim de ocorrência, mas quando chega na delegacia, mesmo sendo atendido por um policial negro, é desencorajado a prestar queixa. Então, conhecemos mais a fundo Felipe, o policial, que é pai de dois garotos negros que estudam na mesma escola que Jonas, mas no turno da manhã. Felipe é o tipo de policial que se acha melhor que todo mundo por ter uma arma, que mesmo sendo negro, não se vê como tal. Em casa, maltrata a mulher e os filhos; no trabalho, mata “bandidos” e negros por diversão. Felipe é a representação perfeita de como funciona a polícia brasileira. E enquanto está ocupado praticando maldades com sua família, não se importa que seu casamento esteja desmoronando e muito menos que um de seus filhos esteja desenvolvendo problemas psicológicos que o leva à uma atitude extrema.

Os outros personagens da história são Thiago, um homem negro que acredita em meritocracia, e Rodrigo, seu completo oposto. Os dois trabalham em uma multinacional e estão disputando uma vaga para o cargo de gerente. Mesmo os dois sendo negros, Thiago faz de tudo para prejudicar o trabalho de Rodrigo, imaginando que dessa forma terá mais chances de ser promovido, mas o que ele não imagina é que a disputa é por algo muito maior e que por mais que tente, não estará facilmente ao seu alcance.

Rodrigo mora no mesmo condomínio em que Edmílson é porteiro e até tem amizade com o síndico, isso antes de saber que ele era um racista. Logo, chega a ser irônico que os caminhos de Felipe e de Rodrigo se cruzem porque o policial imagina que Rodrigo, estando em um bairro de classe média, só poderia estar ali para praticar algum delito; não passa pela sua cabeça que ele poderia ser um morador. Aborda-o de forma truculenta, e por mais que Rodrigo responda as perguntas que lhe são feitas, o policial só acredita quando o síndico aparece e confirma que Rodrigo é mesmo morador. Daí o subtítulo do livro “distante de onde veio, longe de onde quer chegar”: sair de um bairro periférico para morar em um bairro de classe média não necessariamente te faz ascender socialmente se o tratamento racista continuar em qualquer lugar.

Um preto de classe média é um livro que mostra com muita organização como funciona o racismo à brasileira: uma pessoa negra ascender socialmente não dá nenhuma garantia de deixar de sofrer racismo, porque por mais que o dinheiro permita acessar alguns espaços, a sensação de não pertencimento sempre estará presente, seja no ambiente de trabalho, no bairro de classe média ou mesmo na escola particular do filho. Outra nuance do racismo é fazer com que os negros não se enxerguem como tal e sejam levados a acreditarem que são melhores que outros por vestirem determinadas roupas ou ocuparem determinados cargos.

Foto: Reprodução

Em sua primeira publicação, o autor Cardoso de Lima acerta em construir uma narrativa em que a vida de diferentes personagens se cruza e entrecruza, evidenciando as nuances do racismo. Uma narrativa que humaniza os personagens negros, mostrando suas contradições e as diferentes formas como o racismo impacta suas vidas, seja direta ou indiretamente, problematiza bem a solidão de ser uma pessoa negra na classe média, expõe a violência policial e o racismo no ambiente corporativo e escolar.

Senti falta de um grande clímax na história, porque gostaria de ter visto a justiça sendo feita, o policial sendo responsabilizado por seus atos e o síndico racista sendo julgado. Entendo também que na vida real é isso que acontece. É difícil lutar por justiça no Brasil. Mesmo o racismo sendo crime, dificilmente a vítima consegue denunciar. Também teria sido bom se as personagens mulheres tivessem mais voz e tivessem sido um pouco mais desenvolvidas e aprofundadas, porque apenas uma delas tem um capítulo para contar sua própria história e as outras, estão desempenhando o papel de mãe e esposa, e são apresentadas pelos personagens masculinos. Janice é uma militante pelos direitos das minorias, trabalha como coordenadora de recursos humanos com foco em inclusão e diversidade, então ela sabe bem que o discurso meritocrático é uma falácia e tenta de todas as formas tornar seu ambiente de trabalho mais diverso. É com Janice que a narrativa também aborda um assunto muito atual: relacionamentos interraciais.

Cardoso de Lima, por meio do seu livro Um preto de classe média, apresenta uma leitura certeira das relações sociais e raciais no Brasil.

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1 Comentário

  • Responder
    Aline
    27 maio, 2021 em 21:02

    Parabéns, Maria! Ótima resenha.

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