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Literatura LGBTQIA+ Literatura negra

Brandon Taylor aborda microagressões raciais e erotismo em “Mundo Real”

Provavelmente 95% das minhas leituras de 2021 — livros de poesia, romance, contos, ensaios, não-ficção, etc. —, possuem algo em comum: personagens e protagonistas lésbicas, gays, pansexuais, bissexuais, ou heterossexuais questionadores de sua sexualidade — ou o texto em si, como um todo, no caso dos não ficção, questiona e enfrenta o status quo cisheteronormativo literário —, na maioria das vezes, através de uma intersecção de sexualidade com raça, gênero e/ou transfeminismo.

Quando dezembro chega nós (que passamos o ano inteiro lendo ou escrevendo), muitas vezes achamos que já lemos tudo que poderíamos considerar um destaque, uma surpresa, uma leitura avassaladoramente queer. Eu estava neste grupo, afinal, em um curto espaço de tempo havia lido obras de nomes como James Baldwin (O Quarto de Giovanni), Leslie Feinberg (Stone Butch Blues), Christopher Isherwood (Um Homem Só), Audre Lorde (The Black Unicorn: Poems) e Darcey Steinke (Loira Suicida). Até que recebi Mundo Real (publicado no Brasil pela editora Fósforo, com tradução de Alexandre Vidal Porto), que com quase 300 paginas, narra um final de semana na vida de um jovem negro gay e gordo pós-graduando na área de bioquímica em uma universidade repleta de pessoas brancas, tudo isso enquanto lida com a morte do pai e seus traumas da infância resultantes de um abuso sexual — com aval dos próprios pais. 

Existe um subgênero literário chamado Campus Novels, que traduzido para o português, poderia ser chamado simplesmente de “Romances de faculdade”. Muitos destes romances também podem ser considerados — mas nem sempre — “Coming of Age Novels”, que são histórias que geralmente abordam o amadurecimento, ou o desabrochar do adolescente para a vida adulta. O problema é que essas histórias são sempre escritas, protagonizadas e destinadas ao público branco. Faça uma busca em sua memória e veja quantas histórias deste subgênero possuem protagonistas negros? Em entrevista, Brandon Taylor diz: “Eu realmente queria escrever um romance no campus porque os amo muito, mas também queria abordar o fato de que, como gênero, esse tipo de romance tende a excluir os negros e as pessoas queer.” E é exatamente o que temos em Mundo Real: Um personagem negro tendo a oportunidade de protagonizar a sua própria história — ainda que tenha que trabalhar o dobro para que consiga receber o mesmo reconhecimento que seus colegas de trabalho brancos e medíocres recebem por fazer o mínimo.

O ponto de partida do enredo é simples: no decorrer de um final de semana abafado de verão em uma cidade universitária, conhecemos Wallace, um rapaz negro, gay e gordo, que graças à uma bolsa de estudos, está fazendo sua pós-graduação em uma universidade predominante branca, e o fato de Wallace ser o primeiro aluno negro em décadas faz com que ele alterne momentos de solidão, autossabotagem, dúvidas profissionais e encontro sexuais com Miller, um de seus amigos brancos, que apesar de afirmar várias vezes não ser homossexual, está questionando sua sexualidade — nesta relação que, apesar de durar apenas três dias, é violenta sexual e fisicamente de um modo que não me lembro ter visto na literatura recente.

Narrado em terceira pessoa de forma incrivelmente orgânica — é importante lembrar que estamos diante de um romance de estreia —, Brandon Taylor alterna entre tópicos importantíssimos sem que haja uma pausa no texto entre um assunto e outro. É uma verdadeira simbiose de sentimentos sobre a solidão e objetificação do homem negro e gay fora dos padrões — principalmente no contexto dos aplicativos de encontro para homens gays, pans e bissexuais —, saúde mental e flertes com o suicídio, e as várias maneiras de lidar com o luto de familiares que não são necessariamente queridos. Os momentos em que o autor permite o narrador voltar ao passado para nos explicar as raízes de todos os problemas de Wallace relacionados à sexualidade e ao seu corpo são aterrorizantes. 

Suspense indireto

Graças à escrita de Taylor, o romance possui um estranho, porém delicioso clima de tensão. Várias cenas e passagens fazem o leitor ficar nas pontas dos pés, pois sentimos que existe um risco inerente à vida do protagonista. Já no contexto profissional, Wallace luta com a vontade de simplesmente abandonar a universidade, a cidade e seus amigos (que lhe causam ao mesmo tempo raiva e tédio), como também a própria vida. Este é um dos temas que mais deixam o leitor apreensivo: a morte do protagonista, principalmente quando ele está velejando com os amigos mesmo sem saber nadar, ou quando resolve ir nadar em um lago durante a madrugada na companhia de um personagem que ao que tudo indica, possui problemas mentais, ou, principalmente, no final do terceiro ato do romance, que acontece no topo de um prédio. 

Em última análise, o que faz Mundo Real ser tão espetacular não é apenas o fato de ser uma história que debate raça, sexualidades, luto, homofobia, racismo institucional, distúrbios alimentares, preconceito, privilégio branco e saúde mental, mas sim, o fato de Brandon Taylor escrever tudo isso de um modo violentamente doloroso e erótico. Nada me preparou para o detalhismo do autor em descrever odores corporais, muito menos para o único capítulo narrado em primeira pessoa, e para uma vulcânica cena de sexo entre dois personagens.

Mundo Real é certamente uma das minhas melhores leituras de 2021, principalmente se levarmos em consideração a vibe “Anti-White Gaze” do roamance; “White Gaze” significa “Olhar branco”, que é ideia de que o artista negro (ou não branco) precisa levar em consideração a reação do público branco frente à sua obra. Em outras palavras, Taylor escreve sem dar a mínima sobre o que o leitor branco pensa sobre sua história.


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