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Não-ficção Negritude

A coragem de quem tem o poder de plantar ideias na cabeça em “Arruda e guiné”, de Bianca Santana

Apesar de, infelizmente, ainda não ser um nome conhecido como deveria, Bianca Santana é uma das jornalistas brasileiras mais importantes em atividade. Ou melhor: Bianca Santana é uma das personalidades brasileiras mais importantes da atualidade. Dizemos isso porque indo além da sua profissão, Santana vem há anos contribuindo ativamente com o debate público nacional, sem se esquivar, e sempre assumindo posições firmes. Seu ativismo junto ao movimento negro e a sua preciosa colaboração na articulação da Coalizão Negra por Direitos não nos deixa mentir. Arruda e guiné (Editora Fósforo), reunião de artigos publicados entre 2017 e 2022, nos mostra por que ela, que também é mestra em educação e doutora em ciência da informação, é uma voz imprescindível para o Brasil de hoje. 

Publicados anteriormente na revista Cult, no ECOA-UOL, na revista Gama e na Folha de São Paulo, os textos da coletânea foram dispostos de maneira cronológica – sendo, inclusive, separados por blocos referentes a cada ano –, o que nos ajuda a situar sua escrita, permitindo que criemos uma linha narrativa do tempo, fazendo com que o trabalho tenha ainda mais força como registro de um tempo histórico. Os temas, todos caros a Santana, vão do cenário político brasileiro à questões raciais, termo guarda-chuva que neste caso faz muito sentido, pois a autora cobre diversos assuntos associados ao mesmo. 

Sempre afiada, Bianca Santana não tem medo de tirar seus leitores da zona de conforto. Ela mete o dedo na ferida e ainda o gira lá dentro. Não são poucas às vezes que ao tratar de temas espinhosos, faz questão de jogar esse caule para cima de nós, sem medo de nos ferir, mas sempre com a intenção de nos fazer acordar. Podemos até nos manter inertes, mas dificilmente esqueceremos de suas palavras. 

Logo na primeira parte do livro, já na comissão de frente, temos um texto conhecido, que começa tirando o chão de muita gente com a pergunta que faz em seu título: quem lava a sua privada? Com sua retórica ímpar, a autora já deixa claro ali, na largada, que não pretende suavizar seu discurso. Coisa que já se comprova com o outro ensaio que completa os trabalhos de 2017, mais uma vez já se anunciando de cara: “Todo preso é um preso político”. Discussão mais do que pertinente, urgente, que ela não tem intenção alguma de deixar passar em branco. 

Ao longo dos textos, a preocupação de Bianca Santa com os rumos políticos do país é muito presente. Na carta que nos endereça, já pontua a incongruência de Luís Inácio Lula da Silva, ator político que tem seu apoio declarado, mostrando que nem mesmo quem tem por aliado é isento de seu olhar crítico. Como diz, “Lula é fundamental no ano-ponte de 2022. Mas queremos mais”. Isso se soma a outros bons momentos, como quando confronta diretamente o presidente em exercício Jair Messias Bolsonaro. A propósito, é emblemático o artigo no qual ela pergunta e fundamenta seus incômodos acerca dos reais motivos por trás de seu curioso interesse em federalizar as investigações acerca do assassinato da vereadora Marielle Franco. A hipótese que levanta ao observar a suspeita ligação entre o presidente e seus familiares ao caso são certeiras, o que levou, inclusive, ao mesmo tentar intimidá-la de forma tacanha e mentirosa em uma de suas famigeradas lives de quintas-feira. Não só não conseguiu, como ainda foi condenado a indenizá-la em dez mil reais por conta dessa atitude covarde. 

E por falarmos em Marielle Franco, não são poucas as vezes que o nome e a memória da parlamentar são postas sob os holofotes pela jornalista. Seu assassinato que segue sem respostas é um dos temas mais caros a Santana, que tem sido uma das pessoas mais aguerridas na busca por sua justiça.

Imagem: Arquivo pessoal / Desinformante

Contudo, não surpreende e muito menos choca a ninguém que mesmo nos rumos políticos do país, a desigualdade racial e seus desdobramentos se mostrem intrínsecos. E aqui fica nítido a importância que o olhar de uma jornalista negra tem ao observar as peças desse tabuleiro se movimentando. É impossível dissociar uma coisa da outra, mas que ainda assim, intelectuais brancos teimam em tentar. Não é à toa que a autora insiste em chamar os brancos na xinxa. À certa altura, ela crava: “o tempo passou, mas o Estado brasileiro segue como instrumento das elites brancas para que o poder e a riqueza sigam com os mesmos”. Por isso a necessidade que Santana tanto sente de cobrar a que sem apresenta como antirracista no rolé. Até porque é inadmissível que em 2019 o então governador do Rio de Janeiro sobrevoe as favelas cariocas para acompanhar os ataques da polícia militar, bravando que é para “mirar na cabecinha”, levando a direita fascista ao regozijo e nada aconteça contra esse absurdo de forma efetiva. Por isso tudo também o elogio feito por ela à Magazine Luiza por dar um passo importante contra o pacto narcísico da branquitude, ajudando, mesmo que ainda muito pouco, no enfrentamento do racismo institucionalizado. 

Dentre tantos tópicos importantes para Santana, um que merece destaque é o colorismo. Dois textos fortes guardam seus argumentos: “Quem é mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial” e “Nossa negritude de pele clara não será negociada”. No primeiro, ela nos conta como Sueli Carneiro a incentivou a tratar do tema e faz um breve histórico sobre como ambos se tornaram questões no nosso cotidiano. Já o segundo, que num primeiro momento é embebido de ironia, é um texto pungente no qual a autora nos demonstra com dados e exemplos como todo o discurso acerca de um suposto “privilégio pardo” é conversa para boi dormir. 

Todavia, não é só de lamentos e indignações que é feito Arruda e guiné. Bianca Santana também traz para as conversas motivos de orgulho para a comunidade negra. Num momento bonito, a autora faz uma bela homenagem à gigante Sueli Carneiro – quem biografou em Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro (Companhia das Letras) – por ocasião de seu aniversário de 70 anos. “Quilombismo”, seu texto sobre esse conceito criado por Abdias Nascimento e o seu legado também vem com essa carga positiva, e dialoga com “É preciso saber mergulhar”, um dos textos mais bonitos da coletânea, no qual ela defende que “a partilha em comunidade, recorrente entre pessoas negras à margem, da estrutura econômica do capital, precisa ser constatada como tecnologia social potente, como possibilidade de futuro, não como sintoma de exclusão. O olhar colonizado sobre nossa história nos mantém na superfície, sem respirar com as ondas batendo na cara. Precisamos do mergulho. Precisamos do quilombo”. 

Resistência negra no Brasil contemporâneo, subtítulo de Arruda e guiné foi uma escolha muito acertada, pois ele sintetiza muito bem a força que essa reunião possui. Obra que denuncia o racismo em suas diferentes maneiras de ser, que não deixa George Floyd, Guilherme Silva Guedes e Ágatha Felix serem esquecidos. Que lança um olhar crítico para a realidade do país, que discute a maneira desastrosa como a pandemia da covid-19 foi encarada, e que, apesar de todos pesares, também honra importantes nomes da nossa história, como os já citados Sueli Carneiro e Abdias Nascimento, mas também Lélia Gonzalez e Tula Pilar. Bianca Santana é pessoa essencial e necessária para se pensar o país de hoje, mas também o de ontem e o de amanhã. Como ela não nos deixa esquecer, Exu matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje, afinal. Que ela sempre tenha guiné na varanda de sua casa para a sua proteção, como um galho de arruda na orelha para afastar o mau-olhado e o quebranto. Viva Bianca Santana!

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