Memória e sacrifícios: uma resenha de ‘Os viajantes’, de Regina Porter

Talvez uma das últimas coisas que alguém fosse pensar nos Estados Unidos de 1946, era a possibilidade de que uma família negra e outra branca pudessem estreitar seus laços, sobretudo de modo afetivo. Afinal, o país só viria a experienciar o movimento pelos direitos civis dos cidadãos negros estadunidenses oito anos depois. Portanto, é de se imaginar que a relação entre esses dois grupos sociais fosse um tanto distanciada naquela época. Cada um vivendo com os seus em suas realidades distintas. Entretanto, se uma vida inteira pode mudar drasticamente em questão de segundos, muito pode acontecer com o decorrer do tempo. E é isso que nos mostra Regina Porter em Os viajantes, seu primeiro romance, editado no Brasil pela Companhia das Letras e que conta com ótima tradução de Juliana Cunha.

Em Os viajantes acompanhamos alguns personagens que giram em torno de duas famílias, uma negra e outra branca, que vão indo de encontro uma da outra conforme a vida avança. O romance começa em 1946, quando James Samuel Vincent Jr tinha apenas quatro anos; pouco depois estamos em 1966, quando conhecemos Agnes Miller, então com dezenove anos. O romance segue os rastros desses dois até 2010, quando seus filhos, Rufus (dele) e Claudia (dela), já estão crescidos, casados e sido responsáveis por dar um par de netos a ambos, os pequenos Elijah e Winona. Contudo, conhecer os pontos de partida e de chegada é o de menos na obra. Aqui aquela máxima de que a jornada é o que realmente importa se faz verdade.

Agnes e James não poderiam ser mais diferentes. Ela, filha de um estimado diácono do condado de Buckner, na Geórgia, viveu uma infância confortável. Na juventude, manteve uma relação amorosa e secreta com Eloise Delaney, filha de um casal de alcoólatras que é acolhida pela mãe de Agnes, a senhorita Miller, e mais tarde se casa com Eddie Christie, um veterano de guerra, que tem a vida marcada pelos tempos que esteve no Vietnã. Já James, o cara, é um descendente de imigrantes irlandeses, que apesar de ter se tornado um advogado rico que se estabelece na cidade de Nova York, teve uma infância humilde, a qual tenta se afastar. Casou-se duas vezes e tenta entender o sentimento confuso pelos netos, que sem dúvida alguma ama, mas estranha por não se parecerem com ele. Apesar desses dois personagens serem os motivadores – ou até mesmo fio condutores – da narrativa de Porter, eles não são os protagonistas do romance. Vários outros personagens têm arcos muito bem trabalhados e que dão muita força a Os viajantes, como é o caso de Adele Pransky, segunda esposa de James, Jebediah Applewood, primo de Eddie e que também esteve no Vietnã, e os já mencionados Rufus e Eloise, dentre outros.

Os viajantes é uma narrativa marcada por dores e traumas que nos mostram como a vida cotidiana do país que é vendido para todo o mundo como uma verdadeira terra dos sonhos é também alicerçada por muito sofrimento. Cicatrizes são deixadas pelas guerras, que tanto inventam, e pelo racismo, que sempre deixa chagas tão profundas em suas vítimas. E tudo isso contado com muita elegância por Porter. A autora consegue impor força a seu texto, seja ao escrever situações mais simples, porém ainda delicadas e profundas, ou ao descrever experiências mais grandiosas e por isso mesmo turbulentas. É o que ela faz ao narrar uma passagem a princípio banal, mas que se mostra assustadora, envolvendo Eddie Christie, na qual Claudia rasga a sua cópia surrupiada da peça Rosencrantz e Guildenstern estão mortos, de Tom Stoppard, o deixando transtornado e ensandecido. Acontece também quando Porter narra a história de Adele Pransky, que quando nova, trabalhava no bar da mãe e era uma pintora promissora, mas tem a sua vida transformada num caos ao se casar com Yan Sokolov, homem rico, violento e abusivo, levando a relação dos dois para um desfecho violento e traumático. É o que ela também faz ao nos apresentar à vida nada ordinária de Eloise, lésbica, feminista, com facilidade para aprender outros idiomas que também vive a guerra e depois decide fincar seus pés em uma Berlim moderna e que lhe oferece uma vida com quase tudo o que ela quis, exceto a presença de Agnes, o amor de sua vida.

Os viajantes é um romance não linear, que faz do tempo uma ferramenta imprescindível para a sua execução. E por mais que a viagem presente no título da obra ganhe uma representação mais ortodoxa com o tanto de movimento e lugares presentes no trabalho, ela também diz respeito a esses saltos temporais, tão necessários para compreendermos a construção dos personagens, as conexões que eles fazem uns com os outros, por mais efêmeras que possam ser, e, por consequência, os Estados Unidos da América que é desenhado na história. Não à toa, Os viajantes também faz uso de fotografias de diversos momentos da vida norte-americana, nos convidando para essa viagem e reforçando a ideia de que a memória é objeto importante de sua composição. Regina Porter, com muita habilidade, nos entrega um retrato de um país formado por pessoas que escondem as mais diversas feridas sob a pele. Percebemos como o silêncio e as lembranças às vezes são tudo o que alguém pode ter para enfrentar os seus fantasmas. E por mais difícil que seja guardar tudo para si, essa escolha ainda é bem mais fácil de lidar do que compartilhar tudo o que se sente com o outro. Por fim o recado é dado: é necessário passar por cima de muita coisa para que se possa caminhar junto com o tempo e com isso, ir montando um álbum de fotos durante esse percurso.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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