Em O pomar das almas perdidas a jovem autora britânica de origem somali Nadifa Mohamed (considerada em 2013 pela revista Granta como uma das melhores jovens escritoras britânicas, e no ano seguinte pelo Projeto África39, como tendo o potencial para definir a literatura africana no futuro) escreve sobre três protagonistas mulheres presas no caos da ditadura e da guerra na cidade de Hargeisa em 1987: Deqo, uma menina refugiada de 9 anos, sem família, que vive nas ruas; Kawsar, uma viúva rica de 50 anos que perdeu a filha pequena, morta ao protestar contra os crimes cometidos pelo exército; e Filsan, uma ambiciosa militar que está cansada dos assédios sofridos dentro do exército.
As vidas das três acabam por se cruzar nas primeiras páginas quando, durante uma apresentação em um estádio que comemora o aniversário do golpe militar que colocou a ditadura no poder em 1969, Deqo, na esperança de ganhar um par de sapatos novos aceita dançar para milhares de pessoas, mas acaba sendo espancada por outras meninas quando erra seu passo na dança. Da arquibancada, ao presenciar o ocorrido, Kawsar parte em defesa de Deqo, mas acaba presa e espancada por Filsan. Como resultado da violência, Kawsar quebra a bacia, ficando sem os movimentos das pernas.
Após esse início arrebatador, as vidas das três são separadas à medida que a autora, exibindo um talento incrível, escolhe acertadamente quando abandonar a história de uma protagonista e partir para a próxima, amarrando as pontas que precisam ser amarradas, e deixando soltas as que precisam assim permanecer para instigar o leitor durante os três capítulos que recebem o nome de cada uma das três, apenas para retornar ao eminente capítulo final, para sabermos se aquelas mulheres sofridas por todo o tipo de violência resultante da ditadura e da repressão policial irão encontrar algum tipo de redenção.
Contando com passagens terrivelmente violentas, afinal, estamos diante de uma história de guerra e destruição baseada na vida de sua mãe, Zahra Farah Kahim, é sintomático que O pomar das almas perdidas (publicado pela editora Tordesilhas em 2016, com tradução de Otacílio Nunes) seja pautado por momentos de um realismo devastador ao retratar a violência que não poupa bebês, crianças, adultos e idosos, mas que também funcionam como pesadelos surrealistas, como por exemplo, ao narrar a fuga da pequena Deqo no início da história, Nadifa escreve que a pequena “imagina agora que havia mãos agarrando sua saia e puxando-a para trás, para dentro da terra que sugava as pessoas todos os dias” (p. 27), ou quando, ao falar sobre o estado do pequeno quarto onde Kawsar vive abandonada às moscas após todos os vizinhos deixarem suas casas devido à guerra, ela diz que “buracos no teto deixam a água da chuva escorrer pela pintura azul, criando lágrimas fantasmagóricas, como se o quarto pranteasse todas as mortes que testemunhou.” (p. 163).
Nadifa Mohamed
O realismo citado acima ganha mais profundidade porque Nadifa acertadamente inclui pessoas mundialmente conhecidas em sua história, como o arcebispo Desmond Tutu, consagrado com o Nobel da Paz por sua luta no Apartheid anos antes da época em que a história acontece; ou mais adiante, quando ficamos sabendo que Saddam Hussein está envenenando dissidentes. Em determinado momento, ao escrever sobre uma entrevista de Filsan após assassinar um inocente — que o exército transformara em rebelde armado —, percebemos uma relativização da violência cometida por Filsan, já que existem atrocidades ainda maiores acontecendo pelo mundo, numa tentativa sem sucesso de esquecer do crime que cometeu.
A autora não nos dá nenhum tipo de alívio cômico para ser usado como um tipo de respiro, uma paz momentânea (como é costumeiro em obras compostas por momentos tristes e impactantes) para que nós consigamos recuperar as forças antes de voltar para toda aquela tragédia, toda a tortura e todos aqueles mísseis atingindo pessoas inocentes. A passagem explicando como a filha de Kawsar perde a vida é particularmente devastadora. Para se ter uma noção de como a tristeza e a desolação permeiam o livro de modo incessante, em quase trezentas páginas, apenas na página 81 encontramos algo remotamente parecido com humor, quando Karl Marx e Stálin, duas trabalhadoras do sexo são inseridas na história no segmento em que ficamos sabendo sobre a vida de Deqo.
Em última análise, O pomar das almas perdidas é um livro difícil de ler não pelo estilo de escrita adotado por Nadifa, mas devido a violência crua com que ela constrói cada parágrafo, principalmente os que ela se propõe a relatar os assédios sofridos por Filsan. O desconforto nessas ocasiões começa imediatamente ao percebermos do que se trata de fato cada convite, cada gesto masculino em direção à ela. O leitor precisa estar ciente de que se escolher adentrar no épico criado por Nadifa Mohamed, ele nunca mais será o mesmo.
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